
De acordo com o Ministério da Política Social da Ucrânia, um em cada cinco habitantes de uma cidade ucraniana é idoso. A guerra veio agravar a situação de muitos deles: alguns não conseguem obter cuidados médicos de qualidade e muitos já não conseguem sair de casa sozinhos. Por conseguinte, os filantropos e voluntários ucranianos apoiam diariamente as mulheres e os homens idosos que deles necessitam.
A instituição de caridade Rescue Now, sediada em Kharkiv, também presta assistência regular. Todos os meses, no âmbito do projeto “Patronage”, a equipa apoia cerca de 600 pessoas, entregando mais de 7.000 pacotes de ajuda humanitária (alimentos, medicamentos e produtos de higiene). A linha direta do projeto é contactada por pessoas necessitadas, seus vizinhos ou familiares, e a equipa fica a conhecer alguns dos seus futuros beneficiários através de centros sociais ou organizações amigas.
Esta reportagem é sobre um dia passado com Vasyl, um voluntário da Rescue Now que entrega estes pacotes de apoio. Apenas um dia de encontros com seis mulheres idosas cuja dor e ansiedade causados pela guerra, mas também o amor podem encher várias vidas.
Trabalho diário do voluntário Vasyl
O centro Rescue Now está localizado na fábrica de arte “Mekhánika”, na zona leste de Kharkiv. Anteriormente uma fábrica de locomotivas, acolhe agora eventos culturais e aluga espaços. Um deles é ocupado por uma organização de caridade. Há muito espaço para embalar e carregar a ajuda humanitária. É a partir do território da fábrica de arte que começamos a nossa viagem de voluntariado por Kharkiv com Vasyl, na casa dos cinquenta, com cabelo escuro debaixo do boné. Conduz com confiança e faz piadas. Tem trabalhado com os voluntários do Rescue Now desde o início da invasão em grande escala. Anda tanto pela cidade como nas zonas da linha da frente, “por onde é necessário”. Agora, o homem participa no projeto “Patronage”.
Passamos por ruas com muitas casas destruídas pelos bombardeamentos russos. Vasyl diz que lhe dói ver Kharkiv assim. O homem é um habitante local, foi motorista de táxi na sua juventude, por isso conhece bem a cidade. Vamos por GPS, mas nem sempre funciona, por isso, por vezes, confiamos na memória de Vasyl.

Hoje, a lista inclui seis moradas que o homem anotou num papel antes da viagem. Mas ele mantém o registo de todas as informações necessárias com moradas, números de telefone e detalhes no seu smartphone, graças a uma aplicação especial dos parceiros da Rescue Now. Enquanto nos dirigimos a uma das mulheres à espera de ajuda humanitária, Vasyl tem tempo para partilhar a sua própria história: quando começou a invasão em grande escala, levou o pai para fora de Sáltivka do Norte (a zona de Kharkiv que mais sofreu com os bombardeamentos russos) e ajudou os avós da pintora Polina Kuznetsova a sair. Isto deu origem a outra história: o carro branco em que estamos pertencia a este casal. Decidiram deixá-lo para os voluntários da Rescue Now.
O trabalho de Vasyl parece simples à primeira vista: chega à morada, entrega o pacote de ajuda humanitária e tira uma fotografia da pessoa que o recebe para efeitos de registo. No entanto, o homem preocupa-se muito com o destino dos beneficiários, estabelecendo uma certa ligação emocional com eles, o que nem sempre é fácil nos dias de hoje:
— Às vezes é tão frustrante, estas senhoras idosas… Vivia uma na Rua Blagovishchenska, liguei para o centro de atendimento [da Rescue Now] e disse: “Esqueceram-se de indicar, eu já estive lá antes, a avó é tão simpática, vem sempre ter comigo”. E eles disseram: “Ela morreu em janeiro”. É uma pena, não têm ninguém com quem falar, algumas não gostam de lamentações, e eu também não gosto. É por isso que estou com elas com piadas, e elas também se lembram de mim.

Encontra todo o tipo de pessoas: algumas têm dificuldade em andar, outras têm dificuldade em falar ou em lembrar-se dos amigos. Mas, diz Vasyl, também há pessoas com boa memória.
— Meu Deus, quem me dera ter uma mente tão brilhante na minha idade. Bem-humoradas, engraçadas, admiro essas pessoas.
Uma no andar inteiro
Primeiro, visitamos Valentyna. Vive num prédio antigo, com tetos altos decorados com estuque e um chão de azulejos elaborados. A porta é aberta pela sua vizinha Liuba, que estava à nossa espera. No corredor partilhado, conhecemos Valentyna. É uma mulher baixa, com cabelo grisalho curto, vestida com um roupão de pelúcia novo, apoiada num andarilho — tem dificuldade em deslocar-se. Valentyna está bem-disposta e fica radiante quando Vasyl a trata por “estrelinha”. É assim que ele se dirige gentilmente aos seus assistidos para os animar um pouco.

Valentyna fala com modéstia: tem 75 anos e vive nesta casa há mais de 50 anos, porque o seu marido recebeu um apartamento do Estado aqui. Sobreviveu a dois acidentes vasculares cerebrais. Nasceu perto de Vovtchansk e trabalhou numa fábrica em Kharkiv. Ama a Ucrânia.
— Então, fiquei sozinha, não tenho ninguém. Enterrei os meus pais. Trabalhei toda a minha vida.
Diz que tinham começado a viver bem quando a invasão em grande escala iniciou. Os residentes do edifício foram saindo, tendo ficado apenas um vizinho de 85 anos no rés do chão. E Valentyna ficou a única moradora no seu andar. Ficou no seu apartamento. Sozinha. Não havia ninguém para abrir a porta, mesmo que alguém viesse ajudá-la com comida ou qualquer outra coisa.

Mas as pessoas começaram pouco a pouco a regressar. Quando pergunto a Valentyna o que gosta de comer, ela responde com uma certa timidez infantil: “Kholodéts” (geleia de carne — trad.)
“Tinha uma visão positiva da Rússia antigamente”
Chegamos à morada seguinte, onde vive outra Valentyna. A área em frente ao prédio está cheia de vegetação. Uma mulher vem ter connosco no caminho junto à entrada, caminhando com uma bengala. O seu rosto está cheio de rugas, mas ela é luminosa. Vasyl diz-lhe que não a reconheceu desta vez, que ela se arranjou tanto, e ela solta uma pequena gargalhada.

Valentyna fala-nos de si: tem 87 anos e vive sozinha. Tem uma biblioteca em casa com quatro mil livros, que lê a toda a hora. Diz que agora gosta de detetives, mas antes disso lia romances históricos. Sempre gostou de livros e, em criança, costumava visitar a biblioteca local. Foi nessa altura que começou a colecionar os seus próprios livros.
— Gosto de ler. Não posso fazer mais nada. Não posso lavar a roupa. Não posso fazer nada. Mas posso ler.
Valentyna compreende ucraniano e escreve em ucraniano, mas é-lhe mais difícil falar. Por isso, fala-nos em russo. No entanto, garante-nos que não tem qualquer afeto pela Rússia:
— A minha sobrinha vive lá, casou-se com um moscovita. Eu costumava tratar a Rússia bem. Mas agora não os suporto. Morreram tantas pessoas. Kharkiv foi destruída.
Vive com a sua cadela Minhka e a sua gata Mila. Raramente sai à rua, exceto para um pequeno passeio com o cão. Quando fala dos seus animais de estimação, o seu rosto ilumina-se ainda mais: diz que adotou Minhka aos voluntários, em 2014. Aproximou-se deles na rua, e havia um cachorrinho de dois meses, preto, com pêlo branco no queixo e patas castanhas. E Mila, a gata, apareceu no apartamento de Valentyna ainda mais cedo, porque a inquilina do seu neto deixou o animal em casa à sua sorte. A mulher levou-a consigo.

Kharkiv é a cidade natal de Valentyna e agora, segundo ela, é um sítio assustador. Começa a recitar de memória as moradas atingidas por mísseis ou bombas. Perto, mas não aqui. A sua voz começa a tremer, especialmente quando se lembra de Putin. Vasyl brinca: “Grygórivna (nome patronímico da Valentyna — trad. ), não te excites, ou a sua tensão arterial vai subir!”
“Vália, tu vives no paraíso”
As acácias florescem ao longo da estrada e o seu perfume penetra no interior do carro. A rua está coberta de vegetação e de charcos profundos — choveu recentemente. Vasyl e eu chegamos ao próximo endereço da lista. Vália, diminutivo de Valentyna, vive lá.

Perto do edifício há um castanheiro grande e frondoso. Alguém está a cortar a relva com uma máquina. A mulher sai lentamente do edifício, Vasyl avisa-a da sua chegada por telefone, tal como faz com todos os outros assistidos. Valentyna tem 86 anos e vive com o marido, que tem 96. Não têm filhos e vivem sozinhos. Durante toda a sua vida, trabalhou como montadora numa fábrica próxima: aponta-nos a direção da fábrica. Tem cabelo grisalho curto, os seus olhos parecem estar prestes a chorar ou ter acabado de chorar. Fala baixinho. Diz que não saiu depois do início da invasão total:
— [Eu fiquei] aqui. Mas para onde é que eu vou? Com que ir?
No entanto, muitas pessoas foram-se embora. Mas ainda há pessoas que a apoiam: trazem-lhe comida e levam-na ao centro da saúde. Valentyna tem diabetes. Queixa-se de que as suas pernas não querem andar e os seus olhos não querem ver.
Enquanto conversamos, na rua os pombos estão a brigar, os gatos andam por aí, todos os de estimação, diz Valentyna. Ela também tem dois gatos, ambos com 14 anos. Antes tinha uma gata chamada Tchornushka: uma bela gata preta, lembra-se. Ela anima-se um pouco quando se lembra disto:
— Vi um gato na rua e o meu marido disse: “Leva-o para casa”. Ele costumava chegar a casa à noite e bater à porta. Ao princípio não percebi, pensei quem é que batia à noite, então abri a porta e ele entrou.
Também adotou o pequeno Simão cinzento, porque foi atacado por outros gatos. Ela também tem Pushók, que é amarelo como um dente-de-leão. Valentyna diz que os gatos dormem na cama com ela: um a seus pés, o outro debaixo do braço.
A mulher olha para o castanheiro. Foi plantado aqui quando ela ainda estava a trabalhar. E costumavam dizer-lhe: “Vália, vives no paraíso.” Agora, neste paraíso, senta-se num banco de manhã à noite ou até passeia por perto. E agora neste paraíso há guerra.

O mundo visto da varanda
Para entrar no apartamento seguinte, o de Olena, Vasyl fica debaixo da varanda de sacada: ela deixa cair as chaves num saco de celofane. A mulher não pode encontrar-se connosco na rua, por isso entramos no corredor estreito do seu edifício. Vasyl certifica-se de que não se esquece de lhe dar as chaves, porque isso já aconteceu uma vez.

Olena está vestida com um fato cor-de-rosa, bem penteada, com óculos na cabeça, segurando o cabelo como um aro. Apoia-se numa muleta e numa bengala. Não consegue conter as lágrimas. Diz que já não pode estar aqui, nestas paredes. O seu marido ficou paralisado durante 15 anos e depois morreu. Há um ano, enterrou também o filho, que morreu de cancro. Durante o dia, diz, ainda consegue manter-se animada porque vai à varanda, fala com o seu papagaio Kosha e observa as pessoas que passam na rua. À noite, não sabe o que fazer consigo própria:
— Se não fosse a guerra, talvez tivesse sido mais fácil para mim.
Este apartamento, que Olena odeia por tantas perdas, tornou-se o seu mundo: não pode sair para ir à mercearia, diz ela, as suas pernas não a suportam. Trabalhou no comércio até aos 68 anos, ficando de pé nas correntes de ar quase todo o dia, levantando coisas pesadas. A sua única ligação ao mundo exterior são os vizinhos e os voluntários.
Palavras cruzadas para a memória
Oleksandra vai ter connosco à porta do edifício. Vasyl encoraja-a: diz que é bom que as assistidas não fiquem apenas sentadas em casa. Brinca que, da próxima vez, virá ter com ela com vinho. A mulher recusa sorridente a oferta, mas ela e Vasyl concordam em celebrar a vitória da Ucrânia na guerra. Subimos juntos para o apartamento dela.

Oleksandra trabalhava como enfermeira. Diz que nasceu durante a guerra e que nela vive. É de etnia russa, natural da cidade de Shebekino, mas viveu em Kharkiv nos últimos 70 anos, pelo que se considera uma kharkivense. Já não tem familiares na Rússia.
Vive sozinha e a sua filha vive nos Estados Unidos. Tem uma neta e dois bisnetos. O genro está na frente de combate. Estamos a conversar no corredor do apartamento e um gato começa a pedir-lhe os mimos. Acontece que a filha de Oleksandra deu-lhe o gato para que a mãe não se sentisse tão sozinha. Mas o gato não tem nome, ela chama-lhe “gatinho”.
Em 28 de fevereiro de 2024, um carro veio buscá-la, foi levada para Lviv, pois a sua filha tomou conta da situação. Assim, Oleksandra viveu lá até ao outono de 2022. Lembra-se de que as pessoas no ocidente da Ucrânia eram simpáticas para ela:
— Sentia como se não estivesse em Lviv, as pessoas recebiam-me bem. Quando saía à rua, [os vizinhos] perguntavam-me sempre: “Bem, como estás, o que se passa?”
A mulher diz que não lhe foi cobrado o aluguer, apenas os serviços. Mas lar é lar. Por isso, regressou a Kharkiv. Agora sai um pouco, passeia à volta do edifício, senta-se num banco, compra pão numa loja local. Por vezes, a vizinha traz-lhe legumes frescos da sua horta.
Oleksandra não vê televisão para não se perturbar. Diz que já é suficientemente assustador: as janelas abanam à noite por causa das explosões. Mas gosta de fazer palavras cruzadas para manter viva a memória.

Vasyl fala sobre o seu pai de 94 anos. Também resolve várias tarefas com ele, uma vez que está a desenvolver a doença de Parkinson.
Doença de Parkinson
Uma doença crónica do cérebro. Os sintomas incluem tremores nas mãos, dificuldades na fala, etc. Embora os médicos não saibam como curar completamente a doença, existem medicamentos que ajudam a aliviar a condição e a melhorar a qualidade de vida.— Quando a demência começa, é preciso treinar o cérebro. Tal como os músculos secam com a idade, o mesmo acontece com o cérebro, pelo que é necessário apoiá-lo.
O pão é o presente mais precioso
A última visita é a Tetiana. Ela tem 75 anos, vive no nono andar e usa um andarilho para se deslocar. A escova e a pá do lixo do seu apartamento têm pegas compridas porque ela não se consegue dobrar. Outros objetos também têm de estar a uma altura suficiente para poderem ser alcançados facilmente. Estamos a conversar na cozinha e, entre uma palavra e outra, ouvimos a água a pingar de uma torneira que não está totalmente fechada. A mulher diz que tudo no seu apartamento está a cair aos bocados, mas que não faz mal.

Desde as seis da manhã até quase à hora do almoço, lavava a loiça. E quando chegámos, já se tinha arranjado: um roupão cinzento, um penteado com caracóis a cair sobre o rosto. Estava a sorrir e apercebi-me de que a Tatiana não tinha quase ninguém com quem falar.
Quando a guerra começou, nem sequer me apercebi que era uma guerra. Ainda conseguia andar com muletas. Toda a gente corria, os vizinhos gritavam e eu não percebia nada. E, de repente, vi pela janela: os “grads”(sistema de lançador de foguetes múltiplo — trad.) estavam no ar. Depois caiu uma bomba que destruiu um prédio de cinco andares. Depois caíram mais bombas mesmo ao meu lado e eu fui atirada para trás [pela onda de explosão].
O elevador do edifício não estava a funcionar na altura, mas os médicos conseguiram chegar à mulher e prestar-lhe a assistência necessária a tempo. Tetiana conta que os médicos usavam capacetes e coletes à prova de bala e que penduraram uma goteira num lustre.
Desde então, tornou-se ainda mais difícil para Tetiana andar.
— Este milagre foi como uma vida para mim, comecei a andar com ele e até me ajudou a falar.
A mulher chama ao Rescue Now “Renhouse” porque é difícil para ela pronunciar as palavras corretamente. Vasyl diz que os clientes reduzem frequentemente o nome a “Reskinál”.
Os voluntários começaram a levar medicamentos a Tetiana, mesmo aqueles que não se encontravam nas farmácias locais. Também lhe trouxeram kits de alimentos. A mulher admite que o pão foi o presente mais precioso para ela. Diz que tem vergonha de o ter comido com tanta vontade.
— Não se trata de dinheiro, não se trata de dinheiro. Tenho uma pensão de quatro mil [hryvnias]. E quando o elevador ainda não estava a funcionar, a “Renhouse” costumava trazer pão para o nono andar de pé. E eles não percebem o que significa o pão fresco quando durante dias e dias se come pão seco, e ele já cá está (aponta para a garganta — autor).
Tetiana falou russo toda a sua vida. Diz que o seu pai era russo e odiava a sua mulher de Slobojánschyna porque ela falava ucraniano.
— O ucraniano não era honrado na nossa família, nunca. O meu pai costumava dizer à minha mãe: “Vives aqui há tantos anos e não consegues aprender russo?”. Se ele tivesse vivido para ver este russo, acho que teria percebido tudo.

Tetiana trabalhava como engenheira na sala de máquinas de uma fábrica. Quando tinha trinta e poucos anos, caiu no trabalho, ficou subitamente mal disposta, adoeceu. Desde então, não consegue comer, beber ou andar sozinha e, na verdade, teve alta do hospital para morrer em casa. Diz que só soube disso depois de ter recuperado. A resiliência e o otimismo de Tetiana ajudaram-na a recuperar, e essas qualidades continuam a ajudá-la agora. De volta ao carro, Vasyl disse-me o quanto admirava a mulher:
— Estou encantado com a sua vontade de viver. É quase a única pessoa que está a fazer progressos na sua recuperação. Ela estava tão mal em geral (referindo-se à sua saúde — ed.). Mas ela diz: “Não, não, não, eu desço e vou ter convosco”. E assim desceu com um andarilho. Estou à espera dela para subir com ela. Ela é toda positiva, uma mulher porreira. Ela recebe-me com um sorriso, e eu faço-lhe elogios. E ela fica radiante.
Tetiana recolhe latas de conserva, lava-as e dá-as para as velas das trincheiras. Diz que já não consegue ler, mas vê televisão. Só consegue sentir quando estão a mentir — aponta para o seu coração. Acrescenta que discute muitas vezes com os vizinhos e defende as Forças Armadas da Ucrânia, mas também há entre os habitantes de Kharkiv quem esteja à espera dos ocupantes.
— Quando recebi o passaporte [na juventude], indiquei que eu era ucraniana e a minha irmã mais nova inscreveu-se como russa. E eu senti-me muito triste. Agora penso que foi a maneira de Deus me agradecer.
Agradeceu pela minha bondade, acredita Tetiana. Lembra-se de como sempre tentou ajudar os outros, a levantar sacos pesados, por exemplo.
Quando elogio o penteado da Tetiana, ela levanta-se para me mostrar como o conseguiu fazer: como apanhou o cabelo, como o prendeu com um “caranguejo” e encostou as costas à parede para que o penteado saísse como deve ser. Mesmo neste simples desejo de ser bonita, há uma enorme sede de vida.
— Quando ando, digo isto: “Costas direitas, pernas direitas, passos largos, um sorriso na cara, e sorrir!”

Tetiana fica sozinha no seu apartamento, tal como as outras mulheres que conheci hoje. Vivem nos seus pequenos mundos. Muito provavelmente, não irão a lado nenhum. Kharkiv ainda está de pé. E por detrás de Kharkiv estão elas, nos seus roupões, com sorrisos calorosos e agradecidos, com pão que significa tudo. Estrelinhas!
Danças e gelado
Por volta das 12 horas, dirigimo-nos para o centro territorial da freguesia de Nemyshlianskyi (uma das nove freguesias de Kharkiv). Aqui, a Rescue Now está a implementar outro projeto: os idosos desenham, aprendem a utilizar melhor os seus smartphones e dançam. O caminho para lá é feito pela Avenida dos Heróis de Kharkiv, anteriormente conhecida como Avenida de Moscovo. À medida que nos dirigimos para o centro, começo a ouvir um som estranho, como um zumbido ou um chocalho. Vasyl explica que os tanques costumavam passar por esta estrada e deixaram muitas pequenas fendas.
No segundo andar do centro, ao fundo do corredor, há uma sala de dança. Na parede está pendurado um pedaço de tecido com a inscrição “Amo Kharkiv”. Uma dúzia de pessoas idosas prepara-se para a aula, conversando em pequenos grupos. Uma jovem entra na sala. É Olga, uma psicóloga, mas também adora dançar, por isso hoje está a dar uma aula de dança adjariana (Adjara é uma república autónoma da Sakartvelo / Geórgia — trad.)
Olga usa um vestido preto, um colar verde que lhe cai sobre as costas quando dança, e sabrinas de ballet. Os seus movimentos são leves e o seu sorriso é radiante. Incentiva as suas alunas e um aluno Mykola. Ninguém tem vergonha de dançar, mesmo que não tenha sucesso à primeira. Olho para estas pessoas e vejo beleza. A beleza das tentativas, dos movimentos, de um ligeiro corado no rosto, a beleza dos cabelos brancos e dos olhares concentrados. Durante o intervalo, uma das mulheres, Tetiana, mostra-me uma fotografia da sua neta, e Liudmyla diz-me que dançou e cantou toda a sua vida porque gosta. Nesta sala, a solidão dissolve-se, afugentada por movimentos de dança, risos e música.

Olga diz que trabalha como psicóloga, tanto com crianças como com adultos. Durante a invasão em grande escala, começou também a dar aulas de dança. O noivo de Olga é de Sakartvelo, pelo que ela se apaixonou pela cultura do seu país natal:
— Sinto-me feliz por apoiar as pessoas e dançar com elas. Fico feliz quando vejo a chama nos seus olhos. A coisa mais valiosa é quando começam a mover-se suavemente e a acreditar que podem dançar. Já tive uma mulher que entrou e nem sequer conseguia levantar os braços, tinha mais de 80 anos, e depois, lentamente, começou a dançar e bem. É muito importante para mim a forma como a dança muda as pessoas.
No final da aula, todos são brindados com um gelado em copos de waffle e os dançarinos entusiasmados conversam e decidem o que vão fazer a seguir. Confirmam quando começa a aula de canto coral da semana seguinte e quando é a próxima aula de dança adjariana. As suas vidas não pararam definitivamente depois da reforma, talvez até tenham começado em alguns aspetos.
A Rescue Now está a organizar eventos para os idosos desde o início da primavera de 2024. Até à data, assinaram memorandos com centros de serviços sociais em dois distritos de Kharkiv. Mas, em dois meses de trabalho, já receberam 130 visitas e organizaram festas de chá, terapia artística, aulas de dança, cursos de língua ucraniana e utilização de smartphones.

O pai de Vasyl também dança no parque local e até tem uma parceira que é “nova”, brinca o homem, porque ela tem 86 anos e o pai dele tem 94. E vivem no mesmo bairro, por isso Vasyl está a pensar inscrever o pai nas aulas do Rescue Now. Talvez em breve haja aqui mais um bailarino?
Pode apoiar os idosos solitários de Kharkiv e o projeto “Patronage” da Rescue Now fazendo um donativo.