
A propaganda russa, numa tentativa de justificar a sua agressão contra a Ucrânia, baseia-se na tese de que russos e ucranianos são um só povo dividido pelo insidioso Ocidente. São utilizados como argumentos novas falsificações sobre a opressão da língua russa na Ucrânia e velhos mitos sobre a Rus de Kyiv como o “berço de três povos irmãos“. A Rússia procura apropriar-se e totalmente da história da Rus e, assim, ressuscitar a pretensão de “unir as terras russas” num único Estado. No entanto, temos más notícias para Putin: não é a Rússia, mas a Ucrânia a verdadeira herdeira da Rus.
Geografia. “Vai para a terra russa, para Kyiv”
O Estado da Rus surgiu na região do médio Dnipró como resultado da influência cruzada de duas poderosas forças políticas e culturais sobre os eslavos locais. A primeira dessas forças era a tradição bizantina, que se expandiu da Crimeia para norte. A segunda era a tradição normanda, que vinha em ondas da Escandinávia para o sul. No território onde estas tendências colidiram, a futura Rus nasceu no século IX.
As comunidades russas, das quais deriva o nome do país, espalharam-se por todo o território da Rússia moderna, desde o Golfo da Finlândia, ao longo do rio Volga, até ao Mar Cáspio. No entanto, nenhum destes centros, mesmo os mais antigos (Stara Ladoga), se tornou o centro de cristalização do Estado. A primeira e única capital da Rus que conhecemos por este nome foi Kyiv. E nenhuma das capitais dos feudos da Rus tardia podia competir com esta cidade em termos de dimensão ou importância.

Fonte: The Economist
É por isso que havia uma divisão entre a Rus “em sentido estrito” e a Rus “em geral”. O primeiro termo referia-se ao núcleo do Estado, enquanto o segundo abrangia todos os territórios. É por isso que não só um mercador bizantino podia ir “para a Rus”, mas também um mercador de Nóvgorod ou Vladimir, cujo caminho seguia para Kyiv. Em 1146, na Crónica dos Anos Passados, lemos: “E Sviatosláv, chorando, enviou Yurii em Suzdal, dizendo: ‘Deus levou o meu irmão Vsévolod, e Iziasláv capturou Igor. Vai para a terra russa, para Kyiv’”.
A antiga Kyiv une a Rus e a Ucrânia. Todas as capitais russas (Vladímir, Moscovo, São Petersburgo) são “obras” novas, em comparação.
Política. A democracia no sangue
Embora os eslavos tivessem kniáz (rei, príncipe ou duque) e os normandos tivessem konung, é completamente errado descrever a Rus como uma monarquia. Os governantes eslavos tinham um estatuto mais próximo do de pais do que de reis. Os líderes da Rus eram vistos como irmãos mais velhos nos seus esquadrões. Tanto os eslavos como os escandinavos conservaram fortes vestígios da sua democracia militar original. É por esta razão que os primeiros príncipes da Rus tinham receio de ignorar a opinião dos seus companheiros mais velhos. Uma assembleia da cidade podia recusar-se a ir para a guerra e, nalguns locais, derrubar o governante.
No período tardio da Rus, tornaram-se evidentes as diferenças entre os modelos políticos de cada uma das partes. No centro e no oeste, o poder da aristocracia estava a crescer, um processo típico da Europa. E se um governante (por exemplo, o Príncipe Román ou o Rei Danylo) se elevava acima da nobreza, isso devia-se às suas qualidades pessoais e não à sua condição. No norte, em Novgorod, adaptaram-se à ausência de príncipes hereditários e convidavam-nos nas condições de assembleia.

Fonte: Ukrinform
Em vez disso, nas terras da futura Rússia, uma autocracia começou a tomar forma e os boiardos (nobres) perderam influência. Em 1174, os rebeldes mataram Andrei Bogoliúbskii, mas mais tarde essas formas de resistência tornaram-se irrealizáveis. A autocracia já tinha sido estabelecida no nordeste da Rússia, antes da invasão mongol. Os mongóis apenas reforçaram a tradição de longa data.
Para as terras ucranianas, a luta pelos “direitos e liberdades” foi o cerne da história política desde a era lituana até ao final do século XVIII, quer se tratasse de príncipes ou de cossacos. No século XX, esta cultura política tornou-se ainda mais acentuada.
Democrática até ao ponto da anarquia, a Ucrânia está mais próxima do sistema político da Rus do que a Rússia autoritária (e por vezes totalitária).
Língua. Pontos ucranianos sobre a antiga “i”
Durante duzentos anos, os russos tentaram provar que a Rus era habitada por um único povo russo antigo. Na versão imperial do mito, este povo continuou a existir. E na versão soviética, tornou-se o antepassado do mito dos “três irmãos”: russos, ucranianos e belarussos. Cada um destes conceitos pressupunha invariavelmente que a unidade política tinha de se seguir à unidade cultural.
De facto, se existia uma “cultura comum”, esta abrangia apenas um estrato restrito de Rurik (família de príncipes) e bispos superiores. A maior parte da população da Rus falava quatro ou cinco línguas. A diferença entre elas era a mesma que existe entre as línguas eslavas orientais modernas. Este facto é confirmado por estudos de graffiti nas paredes de Santa Sofia de Kyiv e de cartas de casca de bétula em Nóvgorod.
Já na época da Rus, formaram-se características específicas da língua ucraniana que a distinguem dos seus vizinhos. A primeira e mais importante é a “i-ficação”. Enquanto os russos têm “лес” e “печь”, ucranianos têm “ліс” e “піч” (floresta e forno — trad.). Agora somos os únicos entre vizinhos que dizem “кінь” (cavalo — trad.); os polacos, os belarussos e os russos dizem-no todos com um “o”. Basta pensar em “podcast”: quase o transformámos em “pidcast”!
O nome do fundador do Estado da Rus foi escrito em graffiti e nas crónicas como “Volodymer/Volodymyr”, e pronunciado da mesma forma. Em vez disso, a versão russa moderna “Vladimir” provém da língua artificial eslava eclesiástica.

Já nessa altura, os nossos antepassados usavam ativamente o caso vocativo. Nós ainda o temos, mas os russos perderam-no.
Mesmo que não nos aprofundemos na antropologia física e não meçamos crânios e maxilares, mas apenas comparemos culturas, a conclusão para os russos será dececionante. A língua ucraniana moderna está muito mais próxima da língua da capital da Rus do que a língua russa moderna. Não é de estranhar que, já no tempo de Bogdan Khmelnytskyi, as negociações com a Moscóvia em 1654 fossem efectuadas com recurso a um tradutor
Igreja. Abertura contra o obscurantismo
Durante muito tempo, a ortodoxia ucraniana esteve subordinada à ortodoxia russa, e isso era considerado um dado adquirido. Na realidade, o Patriarca de Moscovo usa ilegalmente o título de “toda a Rus”, porque a verdadeira Ortodoxia da Rus está em Kyiv.
A fé e a Igreja chegaram à Rus vindas de Bizâncio em 988. É perfeitamente natural que a Metrópole de Kyiv pertença ao Patriarcado de Constantinopla.
A partida dos metropolitas de Kyiv para Vladimir e Moscovo, em 1299, não significou nada no sentido eclesiástico. A metrópole de Kyiv foi, de facto, dividida em duas devido à intervenção de políticos (daí a “Mega Rússia” e a “Micro Rússia”), mas de jure permaneceu unida. Em 1448, surgiu uma metrópole de Moscovo separada, que em 1589, através da corrupção e da força, adquiriu o estatuto de patriarcado. Kyiv permaneceu sob o domínio de Constantinopla até 1686, e só então se tornou subordinada a Moscovo.

A Ortodoxia de Moscovo degradou-se gradualmente e adquiriu as características de uma seita no contexto do total isolamento político e cultural do Estado. Ao mesmo tempo, a ortodoxia de Kyiv desenvolveu-se em concorrência com o catolicismo polaco e conheceu um florescimento teológico (literatura polémica) e artístico (barroco cossaco). O choque das duas tradições eclesiásticas no Império Romanov, a partir de 1654, provocou um choque em grande escala na Moscóvia, de facto uma guerra civil conhecida como cisma. Os “kyivanos” saíram vitoriosos da luta contra os “moscovitas” e deram assim um impulso ao desenvolvimento da Rússia.
Nos séculos XVIII e XIX, a ortodoxia russa degradou-se de novo, transformando-se no Departamento da religião ortodoxa. Atualmente, a Igreja ortodoxa russa assemelha-se cada vez menos a uma igreja e mais a um ministério da ideologia russa. E com agentes do KGB ao leme.
KGB
Comité de Segurança do Estado era um órgão governamental da URSS cujas principais tarefas incluíam as informações, a contraespionagem e a luta contra o nacionalismo, a dissidência e as atividades antissoviéticas. Na Rússia, o KGB foi sucedido pelo FSB (Serviço Federal de Segurança).A ortodoxia ucraniana, democrática na sua governação, aberta ao mundo, intelectual e centrada em paroquianos instruídos, é mais parecida com a Igreja da Rus antiga do que a ortodoxia autoritária, fechada e obscurantista da Rússia.
Dinastia. O seu próprio gene
O único verdadeiro argumento russo na disputa pela Rus é dinástico.
É verdade que, depois de 1340, os governantes da maior parte das terras da Rus eram descendentes dos Gediminos lituanos. Em contrapartida, o principado de Moscovo, depois de ter derrubado o domínio mongol, era governado pelos Rurikos, descendentes, embora distantes, de Vladimir, o Grande. Devido a este parentesco, vários príncipes de Moscovo com nomes Ivan e Vasyl, a partir do final do século XV, reivindicaram a “pátria” de Kyiv na luta contra a Lituânia. E funcionava.
De facto, este argumento expirou em 1598 com a morte de Fiodor Ivanovich, o último (e sem filhos!) czar da linha dos Rurikos. Depois dele, o trono foi ocupado por representantes de famílias próximas mas diferentes, os Godunov, os Shuiskii e os Romanov.
No entanto, mesmo que a monarquia fosse restaurada na Rússia de hoje e um dos Rurik se sentasse no trono em Moscovo, isso já não seria suficiente para reclamar Kyiv.
A Rússia moderna tem a mesma relação com a Rus histórica que a Roménia tem com o Império Romano (Imperium Romanum). É uma periferia distante, outrora colonizada pelo centro, que apenas conservou uma aparência da sua herança “parental”.
A Ucrânia, pelo contrário, é a primeira no direito à herança.