Memórias acorrentadas. Como os bósnios de Prijedor lutam pela memória da guerra

29 junho 2025

Há quase 30 anos, terminou a guerra da Bósnia (6 de abril de 1992 — 14 de dezembro de 1995). De acordo com as estimativas, que, evidentemente, não são definitivas, morreram cerca de 98.000 pessoas. Embora o conflito armado tenha terminado, para muitos dos sobreviventes tudo continua. O país ainda está a viver crises relacionadas com a guerra, incluindo movimentos nacionalistas crescentes entre diferentes grupos étnicos. O brutal conflito armado já terminou há muito, mas a busca por pessoas desaparecidas e os julgamentos dos criminosos de guerra, a maioria dos quais ainda vive perto das suas vítimas, continuam a decorrer.

Anastasiia Marushevska, editora-chefe do “Ukraїner International”, participou no projeto “Relatórios do futuro”, organizado pela Fundação WARM com o apoio da União Europeia. Este ano, vários jornalistas, documentaristas e artistas ucranianos foram convidados para uma residência de uma semana na Bósnia, para refletirem sobre vários aspetos da vida no país do pós-guerra, para verem os desafios e as oportunidades que podem ser úteis aos ucranianos que defendem a independência do seu país há mais de 10 anos.

WARM
Uma organização internacional com sede na Bósnia-Herzegovina. Reúne jornalistas, fotógrafos e artistas de todo o mundo para trabalharem em conjunto no domínio do jornalismo de guerra, da arte e da memória.

Região de Prijedor, norte da Bósnia-Herzegovina Cidade de Prijedor Campo de concentração “Keraterm” Campo de concentração “Trnopolje” Campo de concentração “Omarska” Uma vala comum na aldeia de Tomashchytsia Aldeia de Kozarac

Os ativistas locais ajudaram-nos a investigar Prijedor e a sua história: Edin Ramulić e Izidora Ečim. Este relatório é, portanto, sobre esta região no norte da Bósnia-Herzegovina, que tem o segundo maior número de vítimas (depois de Srebrenica). Em 30 de abril de 1992, os sérvios da Bósnia lançaram um ataque a Prijedor e à área circundante. As principais vítimas foram os bósnios e os croatas, mas os ucranianos também foram afetados.

“Era um lugar onde o teu espírito era esmagado”

Um cão grande com uma corrente anda preguiçosamente para trás e para a frente em frente a um edifício alongado vermelho e branco com vários carros estacionados à volta. Parece um pouco uma estação de autocarros velha numa pequena cidade. Ou um armazém ligeiramente degradado com janelas de vidro. O cheiro a tinta ou a gasóleo, como ondas, vem de algum lado.

Este é o antigo campo de concentração “Keraterm”, o mais maldito da região de Prijedor, no norte da Bósnia-Herzegovina. Albergava maioritariamente homens em idade militar que eram considerados uma ameaça pelos sérvios da Bósnia. Após a guerra, Prijedor passou a fazer parte da República Sérvia e a maior parte dos seus habitantes bósnios e croatas foram deportados ou mortos, alguns tiveram a sorte de escapar e muitos continuam desaparecidos.

***Depois da guerra
A guerra da Bósnia terminou com a intervenção da NATO e a assinatura do Tratado de Paz de Dayton, que dividiu a Bósnia-Herzegovina em duas partes, segundo linhas étnicas: A Federação da Bósnia-Herzegovina e a República Sérvia (não confundir com a Sérvia). Parte dos territórios onde foi morto o maior número de bósnios e croatas passou a fazer parte da República Sérvia (em especial, os locais onde se registaram as maiores limpezas étnicas, Srebrenica e Prijedor) e são atualmente controlados pelos sérvios da Bósnia.

Olho em redor e sinto-me um pouco perdida. De repente, vejo que o meu guia, Edin Ramulić, está a mexer na relva, a limpar o lixo perto deste edifício vermelho e branco. Só agora reparo numa modesta placa comemorativa que diz (traduzido do bósnio):

“Em maio de 1992, foi instalado neste local o campo de extermínio “Keraterm”, onde mais de 3.000 prijedorianos inocentes foram detidos, torturados ou mortos. Até agosto de 1992, 300 pessoas inocentes tinham morrido no campo de “Keraterm” ou ainda se consideram desaparecidas.

Edin Ramulić limpa a área perto da placa comemorativa que ele próprio ergueu junto ao edifício do antigo campo de concentração “Keraterm”

Acontece que foi o próprio Edin que a instalou e agora é ele que trata dela. Olho para tudo isto com estranheza e começo a tirar fotografias, como se a sujidade na placa comemorativa fosse algo de muito invulgar. Quando nos conhecemos, Edin disse-me que ele próprio tinha passado por um campo de concentração, mas só agora descobri que o seu pai e o seu irmão morreram aqui, neste edifício banal. É por isso que esta pequena placa simbólica serve também para honrar a memória dos seus entes queridos.

O edifício vermelho e branco ainda tem buracos de balas nas paredes. Quando me aproximo para tirar uma fotografia de mais perto, um cão acorrentado ladra como que para os proteger. Os novos proprietários do edifício estão a tentar tapar os buracos com grossas camadas de tinta, mas elas continuam a cair. Para Edin, estes buracos são marcas dolorosamente simbólicas, porque foi aqui que o seu pai foi baleado juntamente com mais de uma centena de outros prisioneiros. As vítimas foram mais tarde enterradas numa vala comum na aldeia vizinha de Tomašica. O irmão de Edin continua oficialmente desaparecido porque os seus restos mortais não foram encontrados. O assassino do pai do meu guia também vive em Prijedor. Por vezes, Edin vê-o na rua ou no supermercado.

“Não era apenas um lugar onde as pessoas eram presas, mas um lugar onde esmagavam o nosso espírito”, diz Edin sobre o campo “Keraterm”. Aceitou partilhar a sua história comigo, com um arquivista húngaro e uma bósnia que vive atualmente na Croácia. Ela ajudou a traduzir, mas depressa se desfez em lágrimas. Mas Edin não se deixou intimidar por qualquer reação às suas palavras e continuou a contar a sua história:

— O nível de desumanização era incompreensível. Durante os turnos de 12 horas, talvez por tédio, os guardas [do campo de concentração] exigiam que as pessoas [ali detidas] lutassem entre si, se violassem umas às outras, cometessem todo o tipo de perversões… Os guardas do campo de concentração usavam todo o tipo de torturas, exceto choques eléctricos, porque não havia eletricidade. O mais impressionante é que eram os vizinhos que faziam isso aos vizinhos. Até os cidadãos comuns podiam vir pedir ao guarda que castigasse os seus conhecidos.

“Para mim, a procura de pessoas desaparecidas não termina na sepultura, mas no tribunal”

Edin é um conhecido ativista na região de Prijedor. Por esse motivo, o seu nome figura em numerosas listas negras, e a sua própria lista de nomes — criminosos impunes, nacionalistas radicais e pessoas que não têm qualquer interesse em preservar a memória dos crimes e das suas vítimas — não é menos extensa. O homem luta pela paz e pelos direitos humanos, mas a maior parte do seu trabalho é dedicada ao passado, que não viu apenas como um espetador, mas em cujos horrores esteve envolvido. Aos 21 anos, sobreviveu a um ataque dos sérvios da Bósnia a Prijedor e às aldeias vizinhas, que foi o início de uma guerra que nunca terminou para ele:

— Na minha vida e no meu trabalho, não sinto isto tanto como quando vejo a minha mãe. Sempre que a vejo, penso no facto de não ter conseguido encontrar o meu irmão. Sinto-me responsável e culpado, apesar de a minha mãe nunca ter dito nada [sobre o assunto]. Sinto-me culpado por não ter partilhado os seus últimos momentos. Mas se para a minha mãe a busca de pessoas desaparecidas termina com ossos, para mim não termina com uma sepultura [encontrada ou feita], mas com um julgamento.

Estes sentimentos levam Edin a procurar incansavelmente o seu irmão e outras pessoas desaparecidas. Parece lembrar-se de todos os nomes da lista de mais de 4.000 pessoas da região de Prijedor que foram mortas ou que ainda estão desaparecidas. 

Quando visitamos os memoriais na aldeia de Kozarac ou no centro de Prijedor, Edin aponta para os nomes nos memoriais e conta as histórias dessas pessoas: “é muçulmano, não pediram autorização para o colocar aqui”, “este é croata”, “este é um criminoso de guerra”. No cemitério muçulmano, pára de repente numa lápide datada de 1992 e repara que a mulher aqui enterrada foi morta no campo de concentração de Trnopolje. O mais estranho é que, mesmo depois de ter morrido, esta pessoa acabou por estar no sítio errado à hora errada. O facto é que este cemitério está convencionalmente dividido em duas partes, onde os muçulmanos comuns estão enterrados numa parte e as vítimas da guerra da Bósnia estão enterradas na outra (os restos mortais de muitos foram encontrados em valas comuns). Ou seja, de acordo com a lógica dos habitantes locais, a mulher em cuja lápide Edin parou deveria estar enterrada noutra zona do cemitério.

Cemitério muçulmano na aldeia de Kevliany. Tem uma pequena mesquita reconstruída e os restos de uma antiga mesquita destruída durante a guerra. Existe também uma vala comum com um pequeno monumento no seu local.

Um cemitério muçulmano, convencionalmente dividido em duas partes, com um memorial às vítimas da guerra.

“Onde havia luz, havia uma casa sérvia”

No meu segundo dia em Prijedor, fomos com o meu guia Edin e a ativista local Izidora ao antigo campo de concentração de Trnopolje. Trata-se de uma aldeia cujo nome é bastante familiar para mim, ucraniana, porque soa como a cidade de Ternopil, no oeste da Ucrânia. De repente, o meu guia grita, num inglês quebrado: “Ukrainian church!”, e aponta para a berma da estrada. Tento imediatamente procurar uma igreja ortodoxa, porque se enquadraria na fé dos sérvios locais, que também são ortodoxos. Mas, afinal, trata-se da igreja greco-católica ucraniana. O facto é que esta região já teve uma grande comunidade ucraniana entre a população predominantemente bósnia, mas foi incluída nos livros de história como local de um campo de concentração.

No altar da igreja greco-católica de Trnopolje encontra-se um tridente ucraniano

Livros religiosos em ucraniano

Igreja greco-católica ucraniana em Trnopolje

A caminho do antigo campo de concentração de “Trnopolje”, parámos para visitar o padre greco-católico local Mykhailo Stakhnyk. Primeiro, conhecemos a sua família: a mulher, dois filhos (há sete crianças na família), três ou quatro gatos (corriam tão depressa que era difícil contá-los com exatidão), três cães e muitas aves domésticas. A sua casa está situada junto a uma igreja e a um cemitério ucraniano. O filho do padre, também Mykhailo, fala várias línguas ao mesmo tempo: ucraniano comigo, sérvio com Edin e Isidora, e inglês com o arquivista húngaro. Parece ter cerca de 30 anos, é robusto, mas muito hospitaleiro. Estudou teoria musical na universidade, viveu nos Estados Unidos durante algum tempo e agora gere a maior parte das tarefas domésticas aqui em casa. Serve-nos um sumo de maçã caseiro, enquanto a mãe partilha histórias sobre a propaganda da República Sérvia sobre a Ucrânia moderna, que ela diz ser “insuportável de ver”. A sua família é originária de perto de Ternopil e, apesar de terem poucos laços familiares com a Ucrânia, toda a família fala ucraniano e apoia a Ucrânia. No início da invasão em grande escala, recolheram ajuda humanitária, mas foi difícil enviá-la — a República Sérvia complicava todo o processo.

O terreiro da família do padre greco-católico Mykhailo Stakhnyk

No dia seguinte, volto à casa acolhedora desta família ucraniana para falar com o padre, porque durante a minha primeira visita ele estava na escola onde ainda trabalha com as crianças da comunidade ucraniana, inclusive ensinando-lhes a língua ucraniana. Mykhailo faz-me uma visita guiada à igreja, conta-me a história dos ucranianos na região e partilha as suas memórias da guerra da Bósnia.

Mykhailo Stakhnyk com a sua mulher e activistas

Segundo ele, o campo de concentração “Trnopolje” não se situava apenas em algumas casas, mas em toda a aldeia. Os guardas levavam as mulheres para as violarem em casas vazias ou os prisioneiros para os matarem fora do campo. Um dos guardas sérvios matou uma família ucraniana inteira, tendo apenas uma menina conseguido escapar:

— Esta região era desenvolvida, tínhamos eletricidade e telefones. Em seis meses de guerra, tudo isso desapareceu, sem eletricidade, sem telefones, sem água corrente. Antes da guerra, se fôssemos lá fora e olhássemos à volta [à noite], tudo brilhava como corais. Poucos meses depois do início da guerra, era apenas uma noite escura. Onde havia luz, significava que havia uma casa sérvia.

Uma outra menina local foi morta a tiro por um dos guardas à porta da escola, sem qualquer motivo. As crianças estão agora a estudar novamente nesta escola, por isso Edin pede-me para respeitar este facto e não tirar muitas fotografias. Por isso, tiro uma fotografia a uma árvore florida e a uma placa de metal com a inscrição cirílica sérvia “Trnopolje”.

Alfabeto cirílico sérvio
Os sérvios utilizam paralelamente o alfabeto cirílico e o alfabeto latino.

“Somos todos pacientes, somos todos doentes”

Edin percorre o antigo campo de concentração de Trnopolje com a sua pasta vermelha, na qual guarda fotografias das vítimas e dos sobreviventes do local. Todas as fotografias são cuidadosamente colocadas em capas de plástico. O homem mostra-nos as fotografias no momento certo. Uma das fotografias é a de Fikret Alic, uma captura de ecrã de um vídeo realizado por jornalistas britânicos que foi capa da revista Time, em 1992, chocando o mundo.

Edin Ramulić segura uma capa impressa da revista Time com uma fotografia de Fikret Alic no local do antigo campo de concentração de “Trnopolje”.

Estamos no local onde esta fotografia foi tirada e onde o meu guia Edin, que na altura tinha 21 anos, foi mantido em cativeiro. A maioria dos sobreviventes não fala muito sobre as suas experiências. Mas Edin assume esse papel, vira essas milhares de vozes que não serão ouvidas individualmente. Ele suportou e sobreviveu a quase todos os horrores da guerra que uma pessoa pode suportar — limpeza étnica na sua aldeia, destruição da sua casa (que ainda não foi reconstruída), perda do irmão e do pai, envio com a mãe para o campo de “Trnopolje”, fuga do campo e serviço militar no exército bósnio. 

Conversei com Edin durante vários dias, tanto nos locais dos antigos campos de concentração, valas comuns e memoriais, como numa conversa privada no seu gabinete. A abordagem deste homem ao contar histórias sobre a guerra é muito metódica, mesmo profissional. Parece estar a repetir estas histórias pela milésima vez, mas nenhuma delas perde o seu significado. Conta cada uma delas em pormenor, e em cada uma delas está presente como participante, investigador, ativista, ou apenas como um fiel residente de Prijedor. Cada uma destas histórias é pessoal.

Edin Ramulić

Quando lhe pergunto como as pessoas eram deportadas ou presas em campos de concentração, começa a contar a história da sua própria família. Edin parece surpreender-se com o cinismo dos sérvios da Bósnia, que pouco antes da guerra eram amigos, vizinhos e colegas, e que depois vieram separar famílias, tirar bens e matar. Parece sentir-se culpado quando diz que conseguiu escapar, na sua opinião, não por causa de uma coragem extraordinária, mas por causa do acaso. Enquanto o pai e o irmão não conseguiram:

— Os sérvios da Bósnia cercavam as aldeias e iam de casa em casa, levando os homens para um tipo de campo. Depois, no mesmo dia ou alguns dias mais tarde, voltavam para levar as mulheres e as crianças para outro campo. As pessoas eram transportadas em grandes camiões, raramente em autocarros. Fui salvo pelo facto de parecer muito mais novo. Quando o exército sérvio chegou (à aldeia de Edin, perto de Prijedor — ed.), um soldado perguntou-me a minha idade e eu disse-lhe a verdade. Ele ordenou-me que voltasse para junto dos outros soldados e lhes dissesse que tinha 17 anos. No entanto, quando o meu pai mostrou ao mesmo soldado os documentos que confirmavam o seu coração fraco e o seu estatuto de doente, o soldado respondeu-lhe: “Somos todos pacientes, estamos todos doentes”.

Permaneceu no campo de concentração de “Trnopolje”, para onde ele e a mãe foram levados, durante vários dias e conseguiu sair, alegando que era menor de idade. Este campo era conhecido como um campo menos horrível, sem assassínios sistemáticos, mas antes como um ponto de partida para outras deportações. Os homens detidos dormiam, na sua maioria, ao ar livre, no campo de futebol da escola, enquanto as mulheres e as crianças eram mantidas dentro de edifícios. Atualmente, todos os anos, no dia 5 de agosto, os ativistas da organização “Kvart” (que inclui o Edin e a Izidora) organizam manifestações com tapetes neste campo, denominados “Noite em Trnopolje”. Por outras palavras, estendem tapetes coloridos e sentam-se neles juntamente com antigos prisioneiros, ativistas e membros da diáspora, honrando a memória das vítimas. A dolorosa ironia é que, do outro lado do antigo campo de concentração, existe um monumento aos soldados sérvios. Por outras palavras, é como se um monumento aos nazis fosse erguido perto de Babyn Yar e um monumento ao poder soviético fosse erguido na floresta de Bykivnia.

Os campos de concentração na região de Prijedor foram descobertos pela primeira vez por jornalistas internacionais. Radovan Karadžić, sendo um estratega duvidoso, convidou os meios de comunicação social a verem por si próprios que não existiam campos, mas apenas prisões para criminosos. Em agosto de 1992, a equipa noticiosa britânica da ITN conseguiu filmar “Trnopolje”, captando imagens de Fikret Alić e de outros prisioneiros em condições deploráveis. Estes prisioneiros, transferidos de “Keraterm”, sofriam de disenteria, piolhos e doenças dermatológicas. Só mais tarde é que o mundo ficou a saber que, enquanto os homens eram filmados por câmaras na rua, as mulheres e as crianças eram mantidas no interior do campo. Quando os jornalistas revelaram a realidade de “Trnopolje”, os homens que falaram com os repórteres, incluindo Fikret Alić, foram ameaçados. Alić acabou por conseguir escapar, disfarçando-se de mulher, e mais tarde tentou juntar-se ao exército bósnio, mas tossiu sangue.

Radovan Karadžić
Antigo presidente da Republika Srpska na Bósnia, um dos iniciadores e ideólogos do genocídio bósnio. O Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia acusou Karadžić de crimes de guerra e genocídio. Encontrava-se na lista de procurados desde 1995 até ser detido em 21 de julho de 2008. Cumpre atualmente uma pena de prisão perpétua

Após a descoberta de “Trnopolje”, as mulheres e as crianças foram deslocadas para outras regiões da Bósnia ou obrigadas a abandonar o país, enquanto os homens foram enviados para outros campos de concentração na Bósnia, deportados ou ameaçados de morte. O incidente mais mediático foi a morte de cerca de 200 homens no Monte Vlašić. Esta tragédia ficou conhecida como o massacre nos rochedos Korichanski, em 21 de agosto de 1992, muito depois de a comunidade internacional ter tido conhecimento dos campos de concentração.

Atualmente, em frente ao antigo campo de concentração, existe um memorial não às vítimas, mas sim aos soldados sérvios que as torturaram e mataram. É surpreendente o facto de este monumento ter um excerto do poema “Testamento” de Taras Shevchenko ao lado de um poema do poeta sérvio e bósnio do século XIX Petar Kočić. Esta situação explica-se pelo facto de os sérvios da Bósnia quererem dar internacionalidade às suas “conquistas”, para lhes dar uma certa justificação, recorrendo à poesia de Shevchenko, contando também com a lealdade da comunidade ucraniana das redondezas. A placa com o poema de Taras Shevchenko caiu sozinha e não voltou a ser colocada.

O memorial aos soldados sérvios no local do antigo campo de concentração de “Trnopolje” atualmente

Como parte da campanha de propaganda de Radovan Karadžić, as forças sérvias da Bósnia tentaram encenar uma espécie de espetáculo teatral em “Omarska”, outro campo de extermínio perto de Prijedor, o mais famoso da região, que os locais acreditam ser o único nome que os estrangeiros conseguem pronunciar mais ou menos corretamente. Numa demonstração de esplendor artificial, Karadžić

mostrou aos jornalistas partes de “Omarska”. Ed Vulliamy, um dos repórteres que visitou estes campos e que mais tarde testemunhou em Haia, observou que os prisioneiros estavam demasiado assustados para falar. O convite também não se estendeu a visitas à chamada casa branca, onde os detidos eram torturados, violados e mortos. Edin refere-se frequentemente a Vulliamy como “o meu melhor amigo com quem não posso falar”, o que significa que as línguas que falam são diferentes. Agora, “Omarska” voltou a ser uma mina, onde não se pode entrar sem autorização. Edin acrescenta:

A campanha de propaganda da Sérvia
A Sérvia, liderada por Slobodan Milošević, lançou uma campanha de propaganda em grande escala, utilizando, em particular, narrativas históricas da Segunda Guerra Mundial e da ocupação otomana da região, quando os sérvios sofreram perseguições e trabalhos forçados, entre outras coisas. Esta campanha destinava-se a criar movimentos separatistas sérvios em todos os países da antiga Jugoslávia e foi ativamente utilizada pelos dirigentes da República Sérvia na Bósnia.

— Eles [as forças sérvias da Bósnia] queriam encerrar rapidamente os campos de concentração. Em 5 de agosto [de 1992], o mundo tomou conhecimento do campo de Omarska e, em 6 de agosto, transferiram os prisioneiros desse campo para outros campos. Eles estavam preocupados com o facto de o diplomata francês Bernard Kouchner ir visitar “Omarska” depois dos jornalistas. Os meios de comunicação social desempenharam um papel fundamental na fase inicial.

” Eles nunca estiveram presentes numa comemoração das vítimas”

Durante estes dias em Prijedor, atravessando as aldeias circundantes, vejo muitas casas bonitas construídas em vários estilos europeus. A maior parte delas situa-se no local de antigas casas destruídas pelos sérvios da Bósnia. Algumas assemelham-se a edifícios do bairro de Notting Hill, em Londres. Isto cria uma impressão de prosperidade, de algum tipo de progresso, de recuperação do tempo de guerra. Mas há um “mas”: estas casas estão vazias. Foram construídas por bósnios que partiram para outros países ou foram deportados durante ou após a guerra. Quando a guerra terminou, nunca mais voltaram a viver no seu país natal. Cada um tem as suas próprias respostas: alguns reconstruíram para mostrar aos sérvios que os bósnios não tinham desaparecido destas terras, outros não se sentem seguros aqui depois do que viveram, e outros construíram casas para os seus filhos, que, no entanto, não querem deixar outros países europeus onde já se estabeleceram. Atualmente, os habitantes locais chamam a todas essas pessoas de “diáspora”.

Este facto põe em evidência um problema importante: a Bósnia perdeu segmentos significativos da sua sociedade que poderiam ter-se tornado uma força cívica. A limpeza étnica, as deportações, a substituição da população, a emigração e uma política de reintegração quase inexistente conduziram a uma crise social.

Quando visitamos a vala comum em Tomašica, onde foram encontrados os ossos do pai de Edin, paramos numa casa atraente onde dois homens estão a descansar no pátio. O mais velho está a usar uma tiubeteika (barrete — trad.), que parece simbolizar a festa muçulmana do Ramadão. O mais novo não tem símbolos religiosos evidentes, mas está a servir chá ao estilo turco, uma tradição que remonta provavelmente ao Império Otomano. Ambos nos cumprimentam quando nos aproximamos da lápide junto à sua casa. Fico contente por ver que a aldeia não está deserta, apesar da presença de valas comuns e cemitérios mesmo no meio dela. No entanto, Edin explica que é o fim do Ramadão, conhecido na Bósnia como Bairam, e que por isso há mais gente por ali.

Ele constata que a “diáspora” regressa apenas para as férias e festas, vivendo nas suas belas casas talvez apenas duas semanas por ano.

— Não sei se partilho as mesmas emoções que outras pessoas que perderam alguém. Conheço pessoas que vivem na América e assistem a todos os jogos de futebol em que a Bósnia joga. Apreciam a representação da Bósnia, mas nunca foram a uma comemoração nos locais onde os seus pais morreram. Penso que têm sorte em poderem fazê-lo.

A região de Prijedor, parte da República Sérvia, dá-nos uma ideia dos desafios que um país devastado pela guerra pode enfrentar. Em vez de um memorial, existe uma mina no local do antigo campo de concentração de “Omarska”; uma pequena lápide tapada de lixo é talvez a única recordação de “Keraterm” para os forasteiros; e em vez de comemorar as vítimas em “Trnopolje”, existe um monumento que glorifica as forças sérvias, ou seja, os invasores e agressores.

Grafíti com o nome de Ratko Mladić no centro de Prijedor.

Ratko Mladić

Criminoso de guerra, durante a guerra da Bósnia foi Chefe do Estado-Maior do Exército da República Srpska. O Tribunal Penal Internacional de Haia acusou-o de crimes de guerra e genocídio, em particular pelo cerco de quatro anos a Sarajevo e pelo assassínio de 10.000 habitantes, bem como pelo genocídio em Srebrenica, durante o qual o exército sérvio da Bósnia matou mais de 8.000 homens e adolescentes.

É difícil discutir questões relacionadas com a preservação da memória e a luta pela justiça na República Srpska. O governo não coopera com as vítimas e chega mesmo a violar os seus direitos. Os ativistas estão divididos: alguns tendem para o nacionalismo, enquanto outros tentam ser moderados. Edin, em particular, aponta a corrupção como um obstáculo ao progresso, enquanto outros ativistas se queixam da “grande política”, da qual dizem não fazer parte, apesar de trabalharem num ambiente altamente politizado e cumprirem o papel que a sociedade civil deve desempenhar, a co-governação.

Depois de ter visitado Prijedor, ainda me assombra talvez a primeira coisa que vi, aquela imagem: um cão acorrentado em frente ao antigo campo de concentração de “Keraterm”, ignorado por toda a gente. Talvez tenha sido o efeito das primeiras impressões ou a devoção de Edin à sua família que ali morreu que tornaram este sítio particularmente comovente. Ou talvez seja a sensação desconfortável que os cães acorrentados sempre me dão: que o tempo parou e que, independentemente das melhorias que fizermos enquanto raça humana, continuaremos a falhar. Na Indonésia, onde vivo há quatro anos, vejo frequentemente cães acorrentados. Vi-os em aldeias ucranianas e agora em aldeias bósnias. As pessoas têm sempre uma explicação para se desresponsabilizarem pelo tratamento dado aos cães: “eles caçam as nossas galinhas”, “eles correm na estrada”, “eles mordem as pessoas”, etc. Compreendo que é impossível obrigar alguém a soltar o seu cão da corrente, porque muitas vezes isso afeta profundamente ou até contradiz os seus hábitos, crenças e, em última análise, toda a sua visão do mundo. Amarrar um animal é uma espécie de fuga preventiva à responsabilidade, uma falta de vontade de fazer um pouco mais de esforço para mudar o sistema. O problema não é com o cão, mas com a nossa ideia de como ele deve viver connosco como um animal domesticado.

Desde abril de 2022, quando falei pela primeira vez com um homem de Mariupol que tinha sido levado para a Rússia com a sua mulher, tenho vindo a trabalhar gradualmente para aumentar a sensibilização para o facto de o nosso povo estar detido em campos, quer temporariamente antes da deportação, quer indefinidamente. A comunidade internacional está a discutir, por assim dizer, o quadro conceitual correto para estes fenómenos: devemos chamar-lhes “raptos”, “sequestros” ou “deportações”? 

O regresso dos ucranianos deportados, raptados e capturados é uma das condições para o fim da guerra com a Rússia. Por conseguinte, existe a opinião de que a resolução desta questão irá prolongar o confronto durante décadas. Afinal de contas, os territórios não são apenas terras no sentido literal, mas também as pessoas que lá vivem.

A maior parte dos ucranianos deslocados à força  pela Rússia para o seu território continuam desaparecidos, embora não sejam oficialmente reconhecidos como tal. Se conseguirem sobreviver, estão completamente isolados dos seus contextos ucranianos e, por isso, parecem estar presos num limbo, entre as suas vidas outrora pacíficas na Ucrânia e a ameaça de morte em território inimigo. E o pior é que podem nunca ser encontrados. A única hipótese que têm são os corajosos Edins como nós, que continuam a procurar dia após dia, oferecendo uma conclusão lógica (ou pelo menos alguma) para a história, libertando memórias que preferíamos não ter.

Material preparado por

Fundador do Ukraïner:

Bogdan Logvynenko

Autora:

Anasstacía Marushevska

Tradutora:

Anna Bogodyst

Editor de tradução:

Guilherme Calado

Gerente de conteúdo:

Leila Ahmedova

Editora Chefe do Ukraïner Internacional:

Anasstacía Marushevska

Coordenadora de Ukraїner International:

Yulia Kozyryatska

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