Recrutamento de crianças

Como a Rússia está a destruir a identidade das crianças ucranianas nos territórios ocupados

27 maio 2025

Como é que a Rússia conduz a ocupação cognitiva, que desafios teremos de enfrentar após a libertação dos territórios ocupados? E porque é que precisamos de garantir que as crianças que tiveram de crescer sob ocupação não se voltem contra o seu próprio povo no futuro? As respostas a estas e outras questões foram procuradas em conjunto com o Centro de Educação Cívica “Almenda”.

Oficialmente, considera-se que 27 de fevereiro de 2014 foi o dia em que começou a ocupação da península da Crimeia, o que é confirmado por uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Após a ocupação da Crimeia, iniciou-se a integração total da península ocupada no “mundo russo”. Isto não poupou a educação, que Putin transformou num instrumento para instaurar um patriotismo doentio entre as crianças e os jovens no início do seu governo. 

Atualmente, na Crimeia, as instituições de ensino ensinam em russo, as crianças aprendem “valores tradicionais russos” e participam ativamente em movimentos juvenis e infantis russos, incluindo os militares. Apenas 197 crianças têm a oportunidade de receber educação a tempo inteiro em ucraniano e nem uma única escola da Crimeia ensina o programa curricular ucraniano.

Apesar de todos os esforços diplomáticos da Ucrânia e dos seus parceiros estrangeiros, a Rússia ainda controla a Crimeia, pelo que o Centro de Educação Cívica “Almenda” tem vindo a monitorizar a situação educativa na península temporariamente ocupada desde 2014. Criada em 2011, em Yalta, para promover a aprendizagem sobre os direitos humanos, esta organização foi forçada a evacuar para Kyiv e a mudar o seu foco após a ocupação. A equipa documenta agora os crimes russos contra as crianças ucranianas que vivem na Crimeia e nas partes ocupadas de Távria e Pryazóvia. Em primeiro lugar, “Almenda” recolhe informações de fontes abertas, analisando as publicações dos meios de comunicação social locais e as redes sociais, incluindo as páginas de organizações e instituições controladas pela Rússia, uma vez que esta é frequentemente a única fonte de informação sobre o que está a acontecer nos territórios ocupados.

Após a invasão total da Rússia, quando outros territórios da Ucrânia no sul ficaram sob ocupação, tornou-se claro que, no campo da educação, os ocupantes estavam a agir de acordo com um algoritmo desenvolvido na Crimeia, que a equipa de “Almenda” chama de “cenário da Crimeia” de destruição da identidade através da educação. Neste material, baseado nos seus relatórios de monitorização do ciclo do “Soldado Universal” (fevereiro de 2022 a julho de 2023), os investigadores descrevem o quão poderosa é a influência ideológica das autoridades russas nas crianças ucranianas que ainda vivem nos territórios ocupados e quais os desafios que os ucranianos enfrentarão após a libertação destas regiões dos invasores.

O que é o “cenário da Crimeia” de destruição da identidade através da educação?

A eliminação da componente de estudos ucranianos do ensino, a doutrinação e a militarização das crianças e dos jovens são três etapas que, na opinião dos investigadores de “Almenda”, constituem o “cenário da Crimeia” que a Rússia tem vindo a desenvolver desde 2014. Todas elas podem ocorrer em paralelo, como demonstra a situação atual. No entanto, o pior é que o país agressor não parou apenas na Crimeia. Está a redefinir, à sua maneira, o processo educativo noutros territórios ocupados da Ucrânia. Ao erradicar a componente de estudos ucranianos da educação nos territórios ocupados, a Rússia está a certificar-se de que a população perde os seus laços culturais e linguísticos com a Ucrânia. Isto irá complicar grandemente os processos de reintegração, especialmente para as crianças nascidas sob ocupação que não interagiram efetivamente com a língua ucraniana fora do seu círculo familiar (na melhor das hipóteses).

Doutrinação
A introdução deliberada de certas ideias políticas para formar uma determinada consciência social. Pode ocorrer em vários domínios da vida, desde o cultural ao religioso.

Ao destruir as pontes invisíveis entre a Ucrânia e a península temporariamente ocupada, a Rússia tem vindo a imergir à força os cidadãos da Crimeia no seu espaço ideológico há mais de uma década. Os objetivos da doutrinação russa são formar lealdade para com a Rússia, consolidar narrativas favoráveis a ela na mente das pessoas, ou seja, criar cidadãos “convenientes”, incapazes de analisar a informação de forma independente e, mais importante, de não questionar as ações do governo russo.

Outro objetivo é recrutar novos soldados nos territórios ocupados, uma vez que a obtenção de um passaporte russo, mesmo sob coação, constitui um pretexto formal para o recrutamento nas forças armadas russas. Contrariamente às disposições do direito internacional, de acordo com o Ministério Público da República Autónoma da Crimeia, de 2015 a 2023, a Rússia realizou 16 campanhas de recrutamento na península para jovens do sexo masculino com idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos, e mais de 39 000 crimeanos foram forçados a servir nas forças armadas russas.

Além disso, desde 2014, a Crimeia tem vindo a introduzir a “educação militar-patriótica” nas instituições de ensino com o objetivo de preparar para o serviço nas forças armadas russas e, desde 2022, o treino militar básico é parte integrante dos programas educativos. Ou seja, as crianças são treinadas desde a escola para o serviço no exército russo e, após a graduação, todos os jovens que estejam aptos para o serviço militar devem “cumprir o seu dever de servir no exército russo”. O recrutamento de jovens da Crimeia para o exército russo é um crime de guerra nos termos do artigo 8.º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

Por conseguinte, o doutrinamento conduz à fase seguinte, a militarização, que tem por objetivo preparar uma pessoa para servir nas forças armadas russas e, consequentemente, para lutar por este país.

A propaganda do culto da guerra entre as crianças e os jovens, em particular nos territórios temporariamente ocupados da Ucrânia, destina-se a criar uma perceção positiva das invasões em que a Rússia participou, participa ou participará. E o “heroísmo dos libertadores” é um conceito que os russos têm vindo a alimentar cuidadosamente há gerações e que legaliza mentalmente, entre outras coisas, a guerra iniciada na Ucrânia. 

Em conjunto, estes três elementos — a eliminação da língua e da história da Ucrânia, a doutrinação e a militarização — têm como objetivo destruir a identidade ucraniana dos residentes dos territórios ocupados e “reeducá-los” para que se tornem “seus” cidadãos, prontos a lutar contra a Ucrânia e a morrer pela Rússia.

Infelizmente, é assim que terminam as histórias de alguns jovens da Crimeia temporariamente ocupada que morreram na guerra contra a Ucrânia devido à influência das autoridades russas. A Federação Russa está agora a instalar placas comemorativas em sua honra nas instituições de ensino da Crimeia. Algumas das vítimas eram ainda crianças em idade escolar no início da ocupação e serviram depois no exército russo. Infelizmente, estes residentes da península não só sentiram plenamente o impacto do “cenário da Crimeia” da Federação Russa, como também se tornaram suas vítimas. 

Inauguração de uma placa comemorativa de Valentyn Isaichev, na cidade de Sudak, temporariamente ocupada. O rapaz tinha 21 anos na altura da sua morte. Foto: meios de propaganda russos.

Fase 1. Eliminação da língua e da história da Ucrânia do ensino

A primeira fase da destruição da identidade ucraniana, que a Rússia está a utilizar, é a eliminação da componente de estudos ucranianos do ensino. Foi o que o país agressor fez na Crimeia ocupada e no sul da Ucrânia continental:

– erradicou a língua e a cultura ucranianas no espaço público;

– russificou o processo educativo, substituindo os manuais e livros ucranianos por livros russos, e proibiu o ensino de disciplinas de estudos ucranianos (incluindo a história da Ucrânia, a língua e a literatura ucranianas);

distorceu a história dos tártaros da Crimeia nos manuais escolares, retratando-os como cúmplices das tropas alemãs e distorcendo a história da deportação deste povo em 1944;

– substituiu parcialmente os professores locais por professores russos e está ativamente a “reeducar” ideologicamente os educadores ucranianos;

– persegue os ativistas ucranianos.

Crimeia e Sevastopol. Retirada de livros escolares e perda de contacto com a língua materna

A partir de 1 de setembro de 2014, as escolas da Crimeia temporariamente ocupada começaram a ensinar currículos russos e, óbvio, em russo. Ou seja, desde então, os alunos da Crimeia não podem receber educação ucraniana e estudar em ucraniano, em particular, não estudam disciplinas do ciclo de estudos ucraniano (língua, literatura, história, etc.). De acordo com o SOS Crimeia, antes de a Federação Russa invadir a península, 100% dos alunos (191 000 crianças) estudavam ucraniano, enquanto os dados da administração de ocupação da Crimeia mostram que, em 2022, apenas 0,1% dos alunos (197 alunos no total) estudavam ucraniano.

Os livros escolares ucranianos foram confiscados e destruídos já em 2014, tendo sido substituídos por livros escolares russos repletos da ideologia “correta”. Eskender Bariev, membro do Mejlis (governo) do povo tártaro da Crimeia, contou que, numa das instituições de ensino perto de Simferopol, os livros do currículo escolar publicados na Ucrânia foram destruídos de forma demonstrativa em frente dos alunos. Os livros ucranianos foram retirados das bibliotecas por serem considerados “literatura extremista”. E o único meio de comunicação social em língua ucraniana atualmente disponível é a revista “Krym Siogodni” (criada em 2020 com o apoio do “chefe da República da Crimeia” Sergei Aksyonov e ainda publicada de três em três meses), mas é sobretudo mencionada em relatórios de representantes das administrações de ocupação. Alegadamente, os propagandistas russos enviaram o primeiro exemplar desta revista ao Presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyi, para mostrar como a língua ucraniana está a ser desenvolvida e cultivada na Crimeia ocupada.

Em janeiro de 2023, o Ministro da Educação russo, Sergei Kravtsov, declarou que, nesse mesmo ano, os manuais escolares de História seriam publicados nas escolas da Crimeia, incluindo uma secção sobre a “operação especial”. No entanto, muitos livros já estão a fazer o seu trabalho. Por exemplo, em maio de 2023, apareceram fotografias de um manual escolar para o 10.º ao 11.º ano, que fala do “regime antipopular de Kyiv” no território da Ucrânia e da oposição da Rússia ao “Ocidente coletivo”. A secção termina com as palavras “A nossa causa é justa! O inimigo será derrotado! A vitória será nossa!”. Outro manual para o 11.º ano refere-se à Ucrânia como um “estado ultranacionalista” e chama às forças armadas ucranianas “neonazis”. Os manuais escolares, que também estão planeados para serem levados para os territórios temporariamente ocupados e que são utilizados na preparação para o Exame de Estado Unificado Russo em 2024, pedem aos finalistas que identifiquem as causas da chamada “operação especial”. É claro que cada uma das opções de resposta é absurda e está de acordo com o espírito do “mundo russo”.

Obviamente, os educadores ucranianos também estão a sofrer com a ocupação. Desde 2014, os professores de língua ucraniana têm sido obrigados a fazer uma nova formação de acordo com as normas russas para poderem ensinar russo. Aqueles que se atreveram a ir contra o sistema por sua conta e risco mudaram de profissão para não cooperar com os ocupantes e, pelo menos, ganhar o pão.

A Rússia também encorajou ativamente a deslocação dos seus próprios professores para a Crimeia temporariamente ocupada, por exemplo, através do programa “Zemskii Uchitel”, que envolveu 25 professores em 2022.

Zemskii Uchitel
Um programa do Governo russo que concede pagamentos adicionais aos professores que se deslocam para trabalhar em aldeias ou cidades com uma população de até 50.000 habitantes.

O ensino ministrado na língua tártara da Crimeia também se tornou muito mais difícil. De acordo com a administração da ocupação da Crimeia, em 2023, apenas 3,2% dos estudantes (7.300) estudavam em tártaro da Crimeia. As autoridades russas estão, de facto, a fazer com que esta língua deixe de ser utilizada.

Tudo isto mostra que a Federação Russa está a fazer tudo o que está ao seu alcance para garantir que os residentes da Crimeia temporariamente ocupada percam a sua ligação linguística com a Ucrânia e que os cidadãos da Crimeia cuja língua materna é o tártaro da Crimeia percam também a ligação com ela. As crianças nascidas na ocupação não têm qualquer contacto com a sua língua materna no espaço público, uma vez que as autoridades da ocupação a classificam como a “língua do inimigo”. Mas é importante que, mesmo nestas circunstâncias, os residentes da Crimeia ocupada continuem a resistir aos invasores e a preservar a sua própria identidade, por mais difícil e por vezes perigoso que seja.

Sul da Ucrânia continental. Novos clássicos para crianças e o rapto de professores

Desde o início da invasão em grande escala, a geografia dos territórios ocupados pela Rússia expandiu-se significativamente e inclui agora as terras ucranianas apreendidas em 2022.

Em maio de 2022, os funcionários recém-nomeados das administrações de ocupação no leste e no sul da Ucrânia anunciaram que as instituições de ensino iriam passar a ensinar a língua russa, com a possibilidade de formar turmas de ucraniano a pedido dos pais. Estas decisões ajudam a apoiar a narrativa de propaganda sobre a alegada preservação dos direitos culturais dos ucranianos nos territórios “libertados”. À primeira vista, parece um “gesto de boa vontade”, mas, na realidade, os autoproclamados administradores intimidam e pressionam sistematicamente os pais a assinarem uma autorização para deixarem de estudar a língua e a literatura ucranianas.

A história da Ucrânia não é de todo estudada nestas regiões, sendo antes “desnazificada” através da remoção das bibliotecas de livros que contradizem a versão russa da história. Por exemplo, o “Ministério dos Assuntos Internos russo na região de Kherson” gabou-se de ter retirado da biblioteca da aldeia de Novotroitske livros sobre o Holodomor de 1932-1933 e a atual guerra russo-ucraniana, bem como um livro da vencedora do Prémio Pulitzer americano Anne Applebaum sobre a repressão estalinista. Em vez disso, as crianças recebem manuais escolares que impõem uma interpretação favorável dos acontecimentos históricos. Por exemplo, apresentam a Santa Sofia de Kyiv e a Porta Dourada como “património artístico da Rússia”, e chamam aos acontecimentos de Maidan, em 2014, um “golpe de Estado” patrocinado pelos países da NATO, incluindo os EUA e a UE.

Os manuais escolares e livros ucranianos estão a ser retirados de circulação pública, pois, de acordo com “investigação” do Ministério da Educação russo, são reconhecidos como “distorcendo a verdade histórica e fomentando o ódio contra a Rússia”. Em vez disso, são importados livros russos com uma interpretação “politicamente correcta” da história. Uma análise dos manuais escolares levados para os territórios ocupados, incluindo história, geografia e literatura, confirma que a política colonialista da Rússia em matéria de educação tem como objetivo mudar as mentes da população dos territórios ocupados e dificultar (ou impossibilitar) o seu regresso mental ao espaço ucraniano.

A catedral cristã de Santa Sofia de Kyiv e a fortificação da Porta Dourada estão entre os monumentos mais antigos da Europa do Leste. Ambos os monumentos estão situados em Kyiv e são das poucas estruturas sobreviventes dos tempos da Rus de Kyiv

As bibliotecas locais não foram poupadas pelos ocupantes. Por exemplo, em maio de 2022, foram retirados da biblioteca central de Melitopol livros históricos e literatura clássica ucraniana que alegadamente “difundiam as ideias do nacionalismo”. Em junho, todo o sistema de bibliotecas centrais da cidade recebeu vários milhares de livros da Rússia: obras clássicas da literatura russa, literatura histórica e militar, e livros para crianças em idade escolar e do ensino primário. Em fevereiro de 2023, as crianças das escolas do sul ocupado receberam livros de clássicos russos, incluindo Alexander Kuprin, Marina Tsvetaeva, Anton Chekhov, Ivan Turgenev e outros, bem como livros infantis. É de salientar que os russos chamam a estas ações “missões humanitárias”, alegadamente para melhorar a situação das crianças nestes territórios.

A guerra em grande escala levantou a questão de saber o que significa para nós (e para o mundo inteiro) a tão celebrada literatura clássica russa. Só há uma conclusão: é um instrumento invisível, mas extremamente poderoso, de influência suave que normaliza a política colonialista da Rússia e promove uma atitude de desprezo para com os povos que escravizou, incluindo os ucranianos. As crianças que foram educadas com este tipo de literatura durante anos, e, desde 2014, muitas já concluíram as escolas primárias e secundárias, necessitarão de um trabalho educativo a longo prazo, efetuado por especialistas após a desocupação, para ajustarem as suas orientações de valor com as dos países democráticos.

Em agosto de 2023, os ocupantes anunciaram que tencionavam importar cerca de 2 milhões de livros russos naquele ano.

Livros russos na Melitopol temporariamente ocupada (fevereiro de 2023). Foto: meios de propaganda russos.

O livro "ABC" oferecido às crianças na Melitopol temporariamente ocupada. Foto: meios de propaganda russos.

Tal como na Crimeia, os funcionários da área de ensino na Pryazóvia e na Távria continental também são sujeitos a “intimidação educativa”: são forçados a adotar normas educativas russas. A pressão emocional, as ameaças e até os raptos daqueles que se recusam a cooperar com as autoridades de ocupação são instrumentos utilizados pela Federação Russa para alterar o espaço sociocultural.

Os pais estão a ser privados do direito dos seus filhos ao ensino ucraniano à distância e até do direito à educação em casa, perseguindo aqueles que não querem enviar os seus filhos para escolas russificadas. Todos estes esforços da Federação Russa, juntamente com a ameaça constante à vida (hostilidades ativas em algumas áreas) e as dificuldades que acompanham as realidades de uma guerra em grande escala (acesso limitado à Internet, falta de bens de primeira necessidade), visam impedir que as crianças ucranianas recebam educação ucraniana. Assim, são gradualmente afastadas do contexto ucraniano desde tenra idade.

Fase 2: Doutrinação das crianças ucranianas ao “mundo russo”

A segunda componente do “cenário da Crimeia” é a doutrinação, através da qual a Rússia está a enraizar na mente das pessoas as narrativas dos “valores russos tradicionais” que lhe são favoráveis. Estes incluem o patriotismo, a cidadania, o serviço à “Pátria” e a responsabilidade pelo seu destino, a prioridade do espiritual sobre o material, o coletivismo, a assistência mútua, a memória histórica e a continuidade, e a unidade dos povos da Rússia. Juntamente com o isolamento do contexto ucraniano, isto só vem reforçar o efeito desejado pelos ocupantes de “reeducar” os ucranianos para se tornarem russos. A Federação Russa fê-lo e continua a fazê-lo através da educação, dos meios de comunicação social e da cultura de massas nos territórios ucranianos que ocupa:

– impõe a autoidentificação como um verdadeiro cidadão da Federação Russa e incute um sentimento de orgulho em pertencer à “grande Pátria” de todas as formas possíveis (através da participação em eventos de massas que glorificam a Rússia, viagens a sítios históricos, incluindo locais da “glória militar” do exército soviético durante a “Grande Guerra Patriótica”);

– envolve crianças em idade escolar e estudantes em movimentos juvenis russos que promovem os “valores tradicionais” russos e, ao mesmo tempo, militarizam a sua consciência (“Aguiazinhas da Federação Russa”, “Movimento dos Primeiros”, “Voluntários da Vitória”, etc.);

– distorce a percepção da Ucrânia, posicionando-a nos manuais de história como um Estado fascista e neonazi;

– forma na mente das pessoas a imagem do Ocidente coletivo (países da UE, EUA, etc.) como um inimigo.

Crimeia e Sevastopol. Lendas da propaganda e flash mobs

Em 2014, o governo de ocupação da Crimeia aprovou o “Conceito de Educação Patriótica e Espiritual e Moral na República da Crimeia”. Depois de analisarem este documento, os investigadores de “Almenda” concluíram que o sistema de educação formal e não formal da península tem como objetivo formar a identidade russa das crianças e a ideia de que a participação nas guerras travadas pela Federação Russa é “um dever sagrado de cada cidadão russo”. Mas isto foi apenas o início.

Desde o final de maio de 2015, as autoridades de ocupação na Crimeia começaram a implementar a “Estratégia para o Desenvolvimento da Educação na Federação Russa até 2025”, que descreve como formar uma identidade russa. Em suma, introduzir a educação militar e patriótica no processo educativo.

Em 2022, os ocupantes aprovaram a lei local “Sobre a educação patriótica dos cidadãos da Federação Russa na Crimeia”. Esta lei acabou por legalizar e sistematizar a maioria das práticas ilegais da Rússia contra os residentes da península ocupada. Também alargou significativamente o círculo das pessoas sujeitas a essa educação patriótica, adicionando instituições educativas e religiosas.

A Rússia inicia a formação forçada da identidade russa desde tenra idade, quando as crianças ainda não são capazes de analisar criticamente a informação, incluindo as influências a que estão expostas. Esta política começa nos jardins de infância, onde se cria uma realidade repleta de narrativas russas, incluindo símbolos estatais ou fotografias de Putin. A Rússia faz isto tanto na sua própria federação como nos territórios ocupados da Ucrânia. As crianças são envolvidas numa variedade de eventos pró-russos, como flash mobs pró-governo. É evidente que esta base ideológica, lançada desde a mais tenra idade, será muito difícil de alterar na idade adulta, e é obviamente nisso que a Rússia está a apostar.

Um concurso entre jardins de infância para o melhor flash mob "Juntos somos uma grande potência, juntos somos o país Rússia". Sevastopol, 3-9 de junho de 2022. Foto: meios de propaganda russos.

Todas as escolas ucranianas russificadas utilizam ativamente símbolos russos, erguem o tricolor todas as semanas e cantam o hino nacional russo — tudo aprovado pelo Ministério da Educação russo.

Hasteamento da bandeira russa numa escola da Crimeia. Távria, 2022. Foto: meios de propaganda russos.

Para educar as crianças ucranianas no sentido de se tornarem patriotas da Federação Russa, as escolas organizam aulas semanais do ciclo “Conversas sobre coisas importantes”. Em particular, em 2022, todas as escolas dos territórios temporariamente ocupados (TOT), incluindo a Crimeia, tiveram uma aula sobre “O nosso país é a Rússia” para “formar a identidade cívica e o orgulho na Rússia”. Além disso, as crianças ucranianas assistiram às seguintes aulas durante o ano letivo de 2022-2023: “Rússia — Líder Mundial na Indústria Nuclear”, “Dia da Unidade Nacional”, “Dia dos Heróis da Pátria”, “Dia da Constituição”, “Voluntários da Rússia”, “Movimento dos Primeiros”, “Valores Tradicionais Russos”, “A Rússia no Mundo”, “Dia da Ciência Russa”, “Dia da Reunificação da Crimeia com a Rússia”, “Dia da Recordação do Genocídio do Povo Soviético pelos Nazis e seus Aliados”, “Dia da Vitória. O Regimento Imortal” e assim por diante. Até os nomes dão a entender que a Rússia não está apenas a reeducar os jovens ucranianos, mas a implantar nas suas mentes, se não o ódio, pelo menos a hostilidade em relação à Ucrânia e a tudo o que é ucraniano. E, pior ainda, utiliza os seus habituais truques sujos para o fazer: distorcer a história, distorcer e limpar a informação sobre a situação atual na Ucrânia, na Rússia e no mundo, programando as crianças para a guerra contra a Ucrânia e o Ocidente coletivo.

A frequência destas aulas é obrigatória e o conteúdo e os materiais são prescritos pelos russos. As narrativas de promoção do amor à Pátria, ou seja, à Federação Russa, uma atitude positiva em relação à guerra russo-ucraniana e a vontade de continuar a servir a Rússia, em particular no exército russo ou nas forças de segurança, são claramente evidentes nestas aulas.

Aula "O nosso país é a Rússia". Crimeia, setembro de 2022. Foto: meios de propaganda russos.

A doutrinação também se faz através de atividades informais: as autoridades russas organizam numerosos concursos patrióticos, competições e eventos para ensinar as crianças a amar e a orgulhar-se da Rússia.

Concurso "Somos os descendentes da vitória!". Crimeia, abril de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

No processo de formação da identidade de um representante típico do “mundo russo”, a Rússia presta grande atenção aos movimentos de crianças e jovens. São eles o “YunArmiya” (“Exército Jovem” que tem um perfil maioritariamente militar, segundo informação oficial, reunindo quase 1,3 milhões de participantes; segundo outra fonte, 2 milhões), o “Bolshaia peremena” ( “Grande Mudança”, mais de 5 milhões de participantes em agosto de 2023), e, desde 2022, o “Dvizhenie Pervykh”  (“Movimento dos Primeiros”, em novembro de 2023, tem mais de 3 milhões de participantes, incluindo 300.000 mentores e, dentro de 3-5 anos, prevê-se que todos os 18 milhões de crianças russas estejam envolvidos no movimento), e “Orliata Rossii” ( “Aguiazinhas da Rússia”, mais de 57 mil membros-equipas, no final de 2022). Parece que o governo russo está a reavivar a tradição do pioneirismo soviético. Trata-se de um sistema perfeitamente pensado em que cada criança, fazendo parte de um movimento, recebe regularmente uma dose de propaganda.

Pioneiros
Movimento de organizações comunistas infantis na União Soviética que tinha por objetivo educar as crianças em idade escolar no espírito de lealdade para com o Partido Comunista. Os Pioneiros incluíam estudantes do ensino secundário (do 5.º ao 9.º ano).

No seio das “Aguiazinhas da Rússia” são aceites as crianças em idade escolar dos 7-10 anos. Este programa é a primeira fase do “Movimento Russo de Crianças e Jovens”. Aquilo a que os organizadores do programa chamam inocentemente “o desenvolvimento da atividade social”, é, na realidade, uma doutrinação gradual e a longo prazo. A iniciação nas “Aguiazinhas” está a ter lugar ativamente na Crimeia ocupada.

Iniciação às “Aguiazinhas”. Sevastopol, maio de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

O “Movimento dos Primeiros” foi criado em Moscovo, em dezembro de 2022, como a maior e mais ambiciosa organização infantil, que deverá chegar a todas as crianças da Rússia e de outros territórios “russos nativos”, ou seja, ocupados pela Rússia e onde pode exercer influência ideológica. É de salientar que, de acordo com a lenda da propaganda, o movimento foi criado por iniciativa de Diana Krasovskaia, uma estudante da Escola de Engenharia de Sevastopol, que, em abril de 2022, se dirigiu ao Presidente da Federação Russa com uma proposta de criação de uma organização que unisse todas as crianças da Rússia. A primeira unidade do “Movimento dos Primeiros” foi criada pelo Ministro da Educação russo, Sergei Kravtsov, em Henichesk, durante o congresso da fundação. E em janeiro de 2023, os russos começaram a criar ativamente células em instituições de ensino na Crimeia temporariamente ocupada.

Atualmente, o “Movimento dos Primeiros” tem o objetivo ambicioso de unir todos os movimentos de crianças e jovens sob o seu domínio, envolvendo o maior número possível de crianças. Para isso, o movimento tem o seu próprio canal de televisão, turnos especializados em campos de férias, e apoio financeiro a projectos selecionados por membros da organização. Todos estes incentivos deverão atrair 18 milhões de crianças da Rússia e dos territórios ocupados para o movimento.

Abertura da célula do "Movimento dos Primeiros" na escola-liceu n.º 3 de Makarenko, onde, pela primeira vez, estudantes da Universidade Federal da Crimeia se tornaram mentores de crianças. Simferopol, fevereiro de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

As universidades também organizam eventos de propaganda. Por exemplo, em março de 2022, os estudantes da Universidade Federal da Crimeia participaram num concerto para os militares do 56.º Regimento de Assalto Aéreo de Guardas da Federação Russa.

KFU
A chamada Universidade Federal da Crimeia foi criada em 2014 com base na Universidade Nacional Táurica de Vernadskyi (fundada em 1918), em Simferopol. Em 2016, a Universidade de Vernadskyi retomou as suas atividades em Kyiv.

Concerto para os militares do 56.º Regimento de Assalto Aéreo de Guardas na KFU. Simferopol, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Concerto para os militares do 56.º Regimento de Assalto Aéreo de Guardas na KFU. Simferopol, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Todas estas medidas visam garantir que as crianças ucranianas se esquecem ou não têm tempo para absorver a identidade ucraniana. Mas há outra coisa importante: ser um cidadão exemplar da Federação Russa, de acordo com os seus líderes, significa não só apoiar inquestionavelmente o seu governo e qualquer uma das suas acções, mas também estar pronto para o “verdadeiro serviço à Pátria”, ou seja, o serviço no exército (para este fim, recorrem ativamente à militarização).

O que é que isto significa para a Ucrânia agora, após mais de dois anos de guerra em grande escala? Em primeiro lugar, significa que a Rússia já está a investir muitos recursos para criar uma nova geração de pessoas que estejam prontas para lutar contra a Ucrânia, porque a guerra russo-ucraniana é uma luta existencial e não uma luta por território. Em segundo lugar, após a desocupação das cidades no sul, a sociedade ucraniana deve estar preparada para enfrentar a desconfiança ou mesmo várias manifestações de resistência por parte dos jovens dessa região, uma vez que anos de influência da propaganda não passam despercebidos.

A parte continental do sul da Ucrânia. “Yug Molodoi” e a deportação de crianças

Tal como na República Autónoma da Crimeia e em Sevastopol, as administrações de ocupação da Federação Russa começaram a reformar ativamente os processos educativos em Távria e Pryazóvia. Em particular, trouxeram os seus próprios símbolos para as escolas: bandeiras, cartazes com o brasão de armas e o texto do hino nacional russo, retratos de Putin e de figuras culturais e artísticas russas. Durante as férias escolares, foram organizados eventos temáticos para assinalar o Dia da Bandeira Russa (22 de agosto) em Melitopol e Henichesk, e na abertura solene do ano letivo de 2022-2023 foi hasteada a bandeira russa. Vale a pena recordar que este cenário de celebração do Dia do Conhecimento é também uma herança da União Soviética, que foi sucedida pela Rússia moderna.

Infelizmente, as crianças em idade pré-escolar de Távria e Pryazóvia também não conseguiram escapar à influência dos ocupantes. Em 9 de junho de 2023, um jardim de infância da aldeia de Botieve, a 50 km de Melitopol, organizou eventos para assinalar o Dia da Rússia. Durante a celebração, as crianças dançaram com os seus professores vestidos de bétulas, matrioshas e ursos, e ouviram o hino nacional russo. Desta forma, as crianças são normalizadas para os símbolos russos desde tenra idade e envolvidas no espaço cultural russo.

Festa pró-russa num jardim de infância na aldeia de Botieve. 9 de junho de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

As já mencionadas “Conversas sobre coisas Importantes” semanais, destinadas a imergir as crianças em idade escolar nos “valores tradicionais russos”, são também realizadas nos territórios recentemente ocupados. Por exemplo, em 20 de março de 2023, foi dada uma aula sobre o “Dia da Reunificação da Crimeia com a Rússia” na escola Prymorska em Skadovsk, onde foram transmitidas narrativas de propaganda russa às crianças.

Aula "Conversas sobre coisas importantes". Skadovsk, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Nestas regiões, também estão ativos os movimentos de crianças e jovens pró-russos. Os ocupantes, em particular, estão a abrir filiais do movimento russo “Movimento dos Primeiros” e organizações locais, como a “YugMolodoi“, liderada pela cooperante local Yulia Klimenko. As crianças ucranianas também são atraídas para as suas fileiras pela iniciativa #мывместе (#somosunidos — trad.), pelos “Voluntários da Vitória”, pela “União da Juventude Russa”, pela “Jovem Guarda da Rússia Unida”, pelo “Faça!”, “Corpo de Salvamento de Estudantes da Rússia”, “Voluntários Médicos”, União KVN, etc. Os membros destas organizações difundem ativamente a propaganda russa entre as crianças e os jovens. Esta abordagem é talvez a forma mais eficaz de doutrinação, uma vez que é efetuada por pessoas de faixa etária semelhante.

Yulia Klymenko, do movimento juvenil #YugMolodoi, realiza um quiz escolar sobre "A Rússia é a minha pátria" na escola n.º 1 para alunos do 11.º ano. Melitopol, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Um dos instrumentos de substituição de identidade utilizados pelos russos nos territórios ocupados da Ucrânia é a organização de “atividades recreativas” para as crianças da Crimeia e da Federação Russa. No entanto, sob o pretexto de lazer, as crianças ucranianas são na realidade deslocadas à força, e os campos de crianças tornam-se plataformas para a sua “reeducação“. Funcionários da Federação Russa e das administrações de ocupação têm afirmado repetidamente que essas viagens incluem um extenso “programa educativo cultural” e a frequência de aulas opcionais e educativas baseadas em programas russos.

De acordo com o Centro de Humanidades da Universidade de Yale, 78% dos “campos de férias” que identificaram são utilizados para reeducar politicamente as crianças ucranianas e impor a ideologia russa. Representantes de movimentos infantis e juvenis russos, como o “YunArmiya”, o “Movimento de Crianças em Idade Escolar da Rússia” e o “Movimento dos Primeiros”, também foram convidados a participar nos campos de férias para motivar os jovens a aderir a estas organizações. Este parece ser mais um truque bem planeado, porque enquanto as crianças são mais cépticas em relação ao que os adultos lhes dizem, as opiniões dos seus coetâneos, mesmo de outros países, podem ser tidas em conta.

Representantes das administrações de ocupação russas estão também a sabotar abertamente o regresso dos jovens das suas “férias”, como repetidamente relatado por pais que tentam levar os seus filhos para casa. O Centro de Estudos Humanitários da Universidade de Yale descobriu que funcionários russos a todos os níveis dos governos federal e regional, bem como funcionários públicos das administrações locais de ocupação, estão envolvidos na deslocação forçada de crianças ucranianas.

Fase 3. A militarização das crianças,  “YunArmiya” e as classes paramilitares

A terceira fase do “cenário da Crimeia”, do ponto de vista de “Almenda”, é a militarização. As autoridades russas consideram que a propaganda de guerra é uma das principais alavancas de influência e de manutenção das suas posições, pelo que é isto que estão a fazer no domínio da educação nos territórios temporariamente ocupados da Ucrânia:

– envolve os veteranos da guerra russo-ucraniana na educação patriótica das crianças;

– organiza ações de apoio às forças armadas russas — escrita de cartas aos soldados, recolha de ajuda para a frente de combate nos estabelecimentos de ensino, etc;

– abre classes paramilitares especializadas — cadete e cossaco*, promove a educação em instituições educativas militares (escolas Suvorov e Nakhimov);

– envolve as crianças na organização militar-patriótica juvenil russa “YunArmiya”, bem como em campos militares-patrióticos, jogos e competições com elementos militares;

– introduz a formação militar obrigatória nos estabelecimentos de ensino secundário e superior como parte do currículo de todos os estudantes.

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Trata-se dos cossacos do Don, considerados pelos russos como uma sub-etnia da Rússia, cujos representantes vivem desde o século XVI no território moderno da região do Mar de Azov, no leste da Ucrânia e no distrito de Volgogrado da Federação Russa.

Crimeia e Sevastopol. Juramento, “lições de coragem” e crianças em idade pré-escolar com uniformes militares

Crianças vestidas com uniformes militares, celebrações dos “Dias da Glória Militar da Rússia” com a utilização da fita de São Jorge, que é proibida na Ucrânia e em vários países da UE, e celebrações com a participação de veteranos da chamada operação militar especial são também a realidade das crianças que vivem sob ocupação russa na República Autónoma da Crimeia e em Sevastopol.

Celebração do 78.º aniversário do Dia da Vitória no jardim de infância “Rucheiek”. Nizhnegirsk, 9 de maio de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

É por esta razão que o movimento militar e patriótico de crianças e jovens de toda a Rússia “YunArmiya” foi integrado no processo educativo dos estabelecimentos de ensino da Crimeia desde 1 de setembro de 2016. No entanto, na Crimeia, os seus membros foram admitidos logo no final de maio de 2016, ou seja, dois meses antes do registo oficial (final de julho de 2016) desta organização na península. Para o efeito, foi organizada uma teleconferência com Moscovo e o juramento das crianças entre 8 e 18 anos de idade foi prestado a Shoigu, ao Ministro da Defesa russo.

Jogadores do clube desportivo central "YunArmiya" (CSKA) na iniciação. Sevastopol, 24 de maio de 2016. Foto: meios de propaganda russos.

Sergei Shoigu recebe o juramento das crianças ao entrar no YunArmiya, no formato da teleconferência "Moscovo - Sevastopol - Volgogrado - Samara". Moscovo, 24 de maio de 2016. Foto: meios de propaganda da Federação da Rússia.

Com base nas antigas escolas ucranianas, mas agora russificadas, a Federação Russa cria unidades do movimento  “YunArmiya”, onde as crianças aprendem a manusear armas e participam em actividades patriótico-militares: “Vigílias da memória” em locais de glória militar da União Soviética e da Rússia, inauguração de placas comemorativas em honra dos mortos durante a guerra russo-ucraniana, e o jogo “Zarnitsa”.

“Zarnitsa”
O jogo simula operações de combate: os participantes são divididos em 2 equipas. O objetivo é capturar a bandeira do adversário que se encontra na "base". Os jogadores têm de chegar à bandeira e "matar" os seus adversários. Cada um deles tem ombreiras e, se estas forem arrancadas, o jogador "morre".

“YunArmiya” tem um programa de tutoria, que envolve no movimento crianças que estão sob a tutela do Estado. Assim, enquanto os pais das crianças em idade escolar ainda podem recusar a participação dos seus filhos no movimento, os órfãos não têm essa opção. Até ao final de 2024, está previsto inscrever nas fileiras do “YunArmiya” uma em cada dez crianças em idade escolar na Crimeia.

Iniciação dos estudantes dos estabelecimentos de ensino profissional nas fileiras da “YunArmiya”. Durante a cerimónia, os alunos foram saudados por um participante na guerra russo-ucraniana. Sevastopol, novembro de 2022. Foto: meios de propaganda russos.

Etapa regional da competição desportiva e de formação em primeiros socorros entre as equipas da “YunArmiya”, escola n.º 18 de I. I. Bogatyr. Simferopol, 2023. Foto: meios de propaganda russos.

O ensino escolar na Crimeia ocupada é militarizado através dos mecanismos de “educação de cadetes e cossacos” desde o primeiro ano. As aulas de cadetes são abertas ou patrocinadas por várias instituições: O Ministério da Defesa, o Ministério das Situações de Emergência, a polícia, o Serviço Federal de Segurança (FSB), o Comité de Investigação, etc. Para os cadetes, são organizados eventos militares e patrióticos. Por exemplo, em março de 2023, foi realizada na cidade ocupada de Simferopol uma competição militar e desportiva “Cultivando Patriotas”, com estudantes sob o patronato das forças da autoridade e de uma escola cossaca. As crianças demonstraram as suas capacidades em exercícios, marcha com tambores, manuseamento de armas, montagem e desmontagem de espingardas de assalto, conhecimentos de primeiros socorros, e também participaram em corridas de estafetas e provas desportivas de resistência, força e velocidade. Isto é, o que é necessário para servir no exército russo.

Competição "Cultivando Patriotas". Simferopol, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Os estabelecimentos de ensino da Crimeia ocupada organizam regularmente encontros de alunos com participantes na guerra russo-ucraniana, em especial durante as “lições de coragem“. Por exemplo, Renat Kovalevsky, de Sevastopol, juntou-se à campanha de escrita de cartas ao exército russo e discursou no alinhamento escolar da escola n.º 43.

Um participante na guerra russo-ucraniana discursa durante um alinhamento na escola n.º 43. Sevastopol, outubro de 2022. Foto: meios de propaganda russos.

Além disso, desde 10 de novembro de 2022, foi introduzida na península, por ordem de Sergei Aksyonov, a formação militar obrigatória para as crianças em idade escolar. Serão criados centros de formação especiais, os professores serão formados nesta disciplina e será realizado um trabalho militar e patriótico regular com os jovens, incluindo eventos para os “Dias dos Conscritos”, etc. Além disso, na primavera e no verão, serão organizados nas unidades militares campos de treino para os estudantes, onde eles terão aulas de manuseamento de armas de fogo, exercícios físicos e aulas de tática. Estas mudanças já tiveram lugar nos campos de jovens da Crimeia e nas bases de várias organizações patrióticas.

Acampamento de treino "Avanço de YunArmiya". Aldeia de Aromatne, agosto de 2022. Foto: meios de propaganda russos.

Após a invasão em grande escala da Ucrânia pela Federação Russa, as crianças da Crimeia têm estado ativamente envolvidas no apoio à guerra russo-ucraniana, incluindo a participação em eventos pró-governamentais de apoio ao exército russo. Por exemplo, em acções de recolha de ajuda humanitária, cantando canções patrióticas, flash mobs, escrevendo “Cartas a soldado “, etc.

Campanha "Carta a soldado". Sevastopol, 2023. Foto: meios de propaganda russos.

A militarização continua mesmo após a conclusão da escola. Por exemplo, a Universidade Federal da Crimeia organiza uma série de eventos de propaganda, incluindo eventos militares. Em fevereiro de 2023, um participante na guerra contra a Ucrânia reuniu-se com estudantes da Universidade Estatal de Sevastopol e referiu que a chamada “operação especial” tinha “mobilizado e consolidado significativamente a sociedade [russa], especialmente a juventude” e apelou aos estudantes para que apoiassem o exército russo.

Universidade Estatal de Sevastopol
A Universidade Técnica Nacional de Sevastopol foi fundada em 1963 e existiu até 2014. Com a ocupação da Crimeia, tornou-se a Universidade Estatal de Sevastopol, juntamente com outras 7 universidades da península.

Etapa regional do torneio geral de cadetes "Cultivando Patriotas" para as classes de cadetes e cossacos na Academia Médica da Universidade Federal de Moscovo de Vernadsky. Crimeia, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Como podemos ver, o entendimento que o governo russo tem da identidade russa implica uma prontidão para defender a Rússia com armas,  e não apenas para se alistar no exército, mas para obedecer e cumprir ordens, sejam elas quais forem. Isto enquadra-se na noção de “pessoa pequena” uma imagem inerente à cultura russa. Eis o que a académica americana-polaca Emma Thompson tem a dizer sobre esta imagem:

— “Pessoa pequena” é o herói de muitas obras famosas da literatura russa, uma figura completamente impotente e incapaz de qualquer coisa. Mas quando se olha para a história de diferentes países, vê-se que a liberdade e a libertação foram alcançadas unicamente através do sacrifício de uma pessoa comum. Que, em vez de se sentar e chorar, foi lutar pela liberdade.

Esta “pequena pessoa”, dizem eles, não decide nada, mas milhares dessas pequenas pessoas fazem parte de um exército pronto a atacar outro Estado. Para além disso, estas políticas das administrações de ocupação criam a base para um maior recrutamento de cidadãos ucranianos para as forças armadas russas, impondo desde cedo a ideia da necessidade de servir a Rússia e a disponibilidade para se sacrificarem em prol de um Estado hostil. O direito humanitário internacional proíbe a potência ocupante de forçar os residentes dos territórios ocupados a jurar fidelidade e a servir nas forças armadas, bem como de promover o alistamento voluntário. Estas ações podem ser potencialmente sujeitas à apreciação do Tribunal Penal Internacional no que respeita aos crimes de guerra cometidos pela administração de ocupação da Crimeia desde 2014.

No contexto da Crimeia, é de notar que a propaganda de guerra se tornou parte da legalização informativa da ocupação da península desde 2014 e, desde 2022, da agressão armada em grande escala na Ucrânia continental. Por conseguinte, o resultado mais provável para as crianças em idade escolar da Crimeia, se esta não for libertada dos invasores num futuro próximo, é o serviço no exército russo, sendo enviadas para a guerra e para a morte, como, por exemplo, aconteceu a Dmitry Kotov, de 24 anos, que, enquanto estudava na Escola n.º 6 de Dzhankoy , era membro do “YunArmiya” e morreu na guerra russo-ucraniana.

A placa comemorativa. Foto: meios de propaganda russos.

O sul continental da Ucrânia. Encontros com “heróis” e classes de cadetes

As crianças das zonas não controladas pelo governo ucraniano conhecem a cultura da guerra desde tenra idade. Tal como noutras regiões ocupadas, os representantes das forças de segurança russas também são convidados a visitar os jardins de infância e as crianças vestem-se com camuflagem russa para participar nas celebrações.

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No momento da publicação deste artigo, a parte do sul da Ucrânia continental, nomeadamente partes de Távria e Pryazóvia, continua ocupada, e os processos de destruição da identidade ucraniana e de militarização dos jovens estão a ganhar força.

Polícias visitam um jardim de infância na aldeia de Strelkove, janeiro de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

O desfile festivo “Este Dia da Vitória” no jardim de infância n.º 3 em Henichesk, maio de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Em novembro de 2022, na véspera do feriado nacional russo, o Dia da Unidade Nacional, foram abertas unidades regionais do “YunArmiya” nas zonas ocupadas de Donéchchyna, Slobozhánshchyna e Pryazóvia (por exemplo, em Henichesk e Melitopol). As crianças estão a ser ativamente recrutadas para a organização e realizam-se as cerimónias de iniciação pomposas com a participação de propagandistas locais.

O primeiro juramento dos membros da “YunArmiya” com idades 10-18 anos, realizado no cemitério. Melitopol, fevereiro de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

O primeiro juramento dos membros da “YunArmiya” com idades 10-18 anos, realizado no cemitério. Melitopol, fevereiro de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Embora os membros da “YunArmiya” sejam crianças com idades compreendidas entre os 8 e os 18 anos, a sua educação patriótica é levada a cabo por adultos que organizam actividades militares para os seus pupilos. Nelas participam também representantes dos ministérios de ocupação, incluindo o chamado Ministério da Política da Juventude e dos Desportos da região de Kherson.

Representantes do “Ministério da Política da Juventude e dos Desportos” da região de Kherson organizam aulas de treino para membros de “YunArmiya”. Skadovsk, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

E a organização juvenil “YugMolodoi” não só incentiva o estudo do sistema russo, da sua história e geografia, mas também o respeito pelos “valores tradicionais” deste Estado. É claro que a associação militariza as crianças e os jovens. Por exemplo, os ativistas do movimento na aldeia de Cherníhivka, juntamente com representantes da administração da ocupação, participaram na abertura de uma exposição de fotografias dos “heróis” da chamada operação especial.

Exposição de fotografias dos participantes na “operação especial”. Cherníhivka, março de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Nas áreas continentais de Távria e Pryazóvia, estão também a ser abertas as primeiras classes de cadetes na região, sob os auspícios das forças de segurança russas.

A turma do chamado Comité de Investigação Russo na região de Kherson tira uma fotografia para expressar a sua gratidão pelos uniformes recebidos da Fundação Sergei Mikheev com a ajuda do “Ministério da Política da Juventude e do Desporto”. Skadovsk, junho de 2023. Foto: meios de propaganda russos.

Se estes territórios ucranianos não forem libertados dos invasores russos num futuro próximo, prevê-se que as medidas de militarização se intensifiquem nos anos letivos seguintes: o treino militar é um dos módulos obrigatórios da disciplina “Fundamentos da Segurança da Vida” e, em Melitopol, por exemplo, está prevista a abertura de uma unidade de “YunArmiya”.

Portanto, deve ficar bem claro que a Federação Russa está a fazer tudo o que pode, deliberada e sistematicamente, para destruir a identidade ucraniana dos residentes dos territórios ocupados. A doutrinação e a militarização são apenas instrumentos para atingir este objetivo. E, infelizmente, muitos cidadãos ucranianos são simplesmente mantidos reféns pelas autoridades de ocupação russas e, por isso, muitas vezes não conseguem resistir às suas ações criminosas para salvar as suas vidas. Consequentemente, após a desocupação da península, a Ucrânia enfrentará uma série de desafios na reintegração dos seus cidadãos, tanto a nível do Estado como da sociedade. Só através de esforços conjuntos do Estado e das comunidades poderemos ultrapassar as consequências dos anos de propaganda venenosa da Rússia e fazer regressar os nossos cidadãos aos seus contextos de origem.

Crianças ucranianas são vítimas de crimes russos

Infelizmente, não se sabe ao certo quantas crianças ucranianas foram tomadas como reféns pelas autoridades russas. A chamada Ministra da Educação, Ciência e Juventude da República da Crimeia publicou dados sobre quase 230 mil crianças em idade escolar que permaneciam na península, à data de 1 de setembro de 2023. E, de acordo com o Ministério da Reintegração da Ucrânia, 100-120 mil crianças encontram-se noutros territórios temporariamente ocupados (a partir de 1 de setembro de 2022). Privadas do acesso à língua e ao ensino ucranianos, numa situação em que a única forma de obter pelo menos alguns conhecimentos é frequentar uma escola russificada, as crianças ucranianas são vítimas dos crimes da Rússia contra a Ucrânia.

A desocupação cognitiva consiste em trabalhar com a mente das pessoas. Entendemos que a desocupação cinética terá lugar principalmente graças às nossas Forças de Segurança e Defesa, graças aos esforços políticos e diplomáticos. E na altura desta desocupação cinética e física, temos de desenvolver todos os planos relacionados com os processos de reintegração. O que está a acontecer agora na Crimeia e noutras regiões ocupadas? Os russos estão a plantar minas terrestres na mente das pessoas através da sua propaganda, da intensificação da política de informação e da militarização. Por conseguinte, a desocupação cognitiva é, na verdade, o desminar as mentes dos nossos cidadãos dos territórios temporariamente ocupados“, explicou Tamila Tasheva, representante do Presidente da Ucrânia na República Autónoma da Crimeia, num dos debates sobre a desocupação dos territórios e os desafios que lhe estão associados.

A ocupação a longo prazo da Crimeia demonstra que a estratégia russa de apropriação e reeducação das crianças ucranianas é algo que resultará em numerosos desafios após a desocupação da Crimeia e de outros territórios do sudeste. Afinal de contas, as crianças foram ensinadas durante anos a ver a Ucrânia como um Estado hostil que deve ser enfrentado com armas. Por conseguinte, é importante agir agora, desenvolver estratégias reais e eficazes para a reintegração de crianças e jovens, resolver possíveis conflitos e, acima de tudo, ultrapassar as consequências das políticas prejudiciais da Rússia destinadas a destruir a identidade ucraniana. O mais importante é não cair nas narrativas da propaganda russa, que diz que estas crianças são uma “geração perdida” para a Ucrânia. Porque podemos perdê-las precisamente quando nos isolamos delas, as estigmatizamos socialmente ou ignoramos não apenas as suas necessidades, mas a sua própria existência. É exatamente isso que a Rússia espera, pelo que nós, enquanto mundo democrático, não temos o direito de perder esta batalha.

Material preparado por

Fundador do Ukraïner:

Bogdan Logvynenko

Autora:

Kateryna Rashevska

Oleksander Muravlev

Maryna Chyzh

Mariia Sulialina

Tradutora:

Anna Bogodyst

Editor de tradução:

Guilherme Calado

Editora Chefe do Ukraïner Internacional:

Anasstacía Marushevska

Coordenadora de Ukraїner International:

Yana Mazepa

Yulia Kozyryatska

Gerente de conteúdo:

Leila Ahmedova

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